quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Casas. Lugares. Coisas.

As casas são como as pessoas. Porque também haveremos de amá-las mais quando elas deixarem de nos ser. Quando as perdemos.”
Dóris Graça Dias, in "As casas" 


O texto parece que foi feito para mim. Neste momento. Ou sempre. Já li e reli estas palavras várias vezes.

As casas são como as pessoas. Também as amamos. No meu caso, sim. Sempre fui ligada às casas. Não só a estas mas também aos sítios dessas casas. Aos lugares onde se erguem, onde as moramos e as namoramos.

Não vivi em muitas casas. Não sou de mudar de casa. Gosto dos sítios gastos pelo tempo. 
Das marcas do nosso lugar no sofá. Dum canto onde olhamos lá fora, repetidamente. Dos quadros e das fotos que acompanham as casas, em molduras antigas. Das cadeiras que eram da família, lá de cima ou lá de baixo.

Porque tens aquela cómoda tão antiga? Foi o meu pai que me ofereceu, que trouxe de Faro, num aniversário. Tal como aquele óleo duma mulher de lenço, antigo, a precisar de restauro, há anos que precisa de restauro. Uma cadeira que já não pode mais ser restaurada. Pessoas pesadas não podem ali sentar-se, aviso delicadamente, quando chegam.

Quando vejo refugiados, destas e de todas as guerras e conflitos, a saírem de casa, uma trouxa às costas, sinto um nó. Se tivesse que partir sem saber se voltava, o que levar? Que quadro tirar da parede? Que livros escolher para levar? As memórias, a nossa vida ali, como partir? Ficar.

Detesto casas minimalistas. Não é bem verdade. Gosto de ver nas revistas. Ambientes imensos, brancos de neve, uma só cadeira, uma mesa vazia, uma jarra sem história. Poderia morar ali? Não. Só provisoriamente, muito provisoriamente. 

Todos os gabinetes que habitei, nos sítios onde trabalhei, acabavam por ficar cheios, com posters, canecas com canetas e lápis, montes de revistas, livros, anotações. Posters que tive anos e anos e se estragaram, de colar e descolar nas mudanças de escritório, para meu desgosto. Poster duma retrospectiva da pintura de Menez na Gulbenkian, idem do Mário Botas, um poster “A poesia na rua”, da Vieira da Silva. Tenho rolos de posters.

As pessoas entravam e diziam “o teu gabinete é diferente”. Óptimo, não quero ser igual a todos, trabalhar num sítio de ninguém, onde posso ser eu ou outra pessoa qualquer, despersonalizado, como se usa agora. 

Volto às casas, aos lugares, às coisas.
Que conservo no olhar, na alma. 

A vista da minha casa de Faro, a cidade toda e a formosa ria, o mar, o mar no horizonte, a ilha do Farol. A luz do farol que incidia, distante, no meu quarto. As ondas a rebentar na barra em dias de mar agitado. Os aviões a aterrar. Cores laranjas em céus límpidos de muitos pôr-do-sol vistos dali.



A casa de Freixo-de-Espada-à-Cinta que nunca foi minha mas a sentia nas muitas férias que lá passei. Que frio nos quartos, que calor no rio e nos montes. Aqueles montes enormes, de vinhas, oliveiras, amendoeiras, figueiras, para não me esquecer da minha terra a sul. As ruas estreitas de casa antigas. Ti homem e ti mulher, bom-dia, boa-tarde, somos sobrinhos do senhor Manuelito. Então, está bem.



A casa de Lisboa. Há trinta e dois anos, a mesma. Quando para cá viemos, a rua era terra e atrás pastavam rebanhos. Não havia telefone. Não passava ninguém. As árvores não tapavam as janelas. A rua alcatroou-se, o bairro cresceu demais. Ficou na moda. Há metro, cafés, esplanadas, mercearias, ciclovias, pessoas, até escritórios. Nunca mudei, espero não mudar. Uma vez quase saí de cá mas desisti a tempo.



E a casinha. Que não é minha de propriedade. Apenas de amor. O lugar da casinha, adoptado. As coisas que fui juntando na casinha. Posters colocados em sítios improváveis. Pratos alentejanos, bilhas, loiça do Bordalo, plantas. Sempre cadeiras. A salamandra que aquece o Inverno. Os cobertores que aquecem as pernas apesar da salamandra. A chaise longue amarela onde, mal me sento, me deixo dormir. A colcha às cores que a Ana fez. A mesa enorme na cozinha, que lhe vamos fazer?



Amamos ainda mais as casas quando as perdemos. 

2 comentários:

  1. Fez ontem,27 de agosto,38 anos que vim viver para esta casa.
    É pequena,mas já gosto muito dela.

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  2. Tal como tu tb não mudei de casa muitas vezes todas elas não eram as minhas casas de sonho mas em todas elas deixei um bocado de mim.

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