quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Andanças de Ina.

Ontem à noite faltou a luz durante uma meia-hora. Estava na sala e, de repente, pum, tudo escuro, casa, rua, não havia lua. 

Já não sabemos viver sem electricidade. Assusta a escuridão total... Depois, os olhos vão-se habituando à ténue luminosidade duma vela. Mas estranha-se.

O momento fez-me logo lembrar uma pessoa que conheci na viagem aos Açores deste Verão.

A bordo do "Gilberto Mariano" que faz o triângulo das ilhas centrais
Mal o barco que faz a travessia entre o Faial e S. Jorge, largou reparei numa jovem rapariga, com uma grande mochila às costas, roupa gasta, chapéu de pano na cabeça, magra, cabelo escuro mas pele clara. Falava sozinha, ou cantava. Mal se sentou, tratou de pendurar peças de roupa a secar nos bancos vazios ao seu lado... 

Estávamos cá fora, na plataforma de cima do "Gilberto Mariano". O dia nascia magnífico de azul, mar plano, ar menos húmido, o que por ali é sempre uma excepção.

Eu oscilava entre alguma impertinência interior por me ter tido que levantar às cinco e meia da manhã e o grande entusiasmo pela viagem, louca para captar tudo. Sem conseguir. Demasiada beleza e força da paisagem. Mar, ilhas, azul, verde, nuvens, laranja, o pico do Pico, um pormenor aqui, outro ali, ai que queria absorver tudo... para partilhar? Para ficar bem interiorizado pois, nesta idade, é difícil repetir os destinos.



A Horta, Faial, 7h 
Andava de um lado para o outro do barco, a ver e a fotografar, máquina, smartphone, não fosse algum falhar. Ora a ilha do Faial que deixava para trás, iluminada pelo sol nascente, ora a ilha do Pico, à frente dos olhos, na sombra da imensa montanha que domina o triângulo das três ilhas.

Consegui não enjoar nessa viagem. O ar estava fresco e limpo, aparentemente sem a humidade habitualmente nos oitenta ou noventa por cento, e o mar calmo, tornando possível estar a pé e rodar a cabeça, sem vontade de vomitar.

Acabei por meter conversa com a tal rapariga que viajava sozinha. Estávamos a chegar à Madalena do Pico e olhávamos ambas para a montanha completamente limpa.


Passagem por S. Roque do Pico 
É impossível não ficar fascinado. Acabámos a conversar. Ela já tinha estado lá em cima e eu também. Há uns anos. Adorou. Voltou. Como eu.

Descobri que a Ina é israelita, 30 anos, e viaja sozinha pelo mundo. Trabalha uns meses como educadora de infância para ganhar dinheiro para viajar outros tantos. Sozinha. Naquela altura, não falamos mais nada.




A Ina sentada com o seu chapéu vermelho, na chegada à Madalena, Pico
Quer na Madalena, quer em S.Roque do Pico entrou no barco uma multidão de pessoas e perdi-a de vista. Só sabia que também ía para S. Jorge, para conhecer a ilha. Como eu.

A aproximação à ilha tornou explícita a sua geografia. Povoações nas terras planas junto ao mar (as chamadas fajãs) no sopé de enormes montes escarpados, criadas pela lava dos muitos vulcões que deram origem a S. Jorge. Todo o centro da ilha, que tem apenas oito quilómetros de largura por cinquenta e seis de comprimento, é feito de enormes montes alinhados, rondando os mil metros de altitude que caiem abruptos para o mar. 


Lá em baixo a vila da Calheta, S. Jorge
Os vulcões alinhados de S. Jorge
Nessa mesma tarde, uma vez instalados na esplêndida Quinta de São Pedro, a um quilómetro de Velas, depois de um revigorante banho de mar na Fajã do Ouvidor e dum almoço de filetes de abrótea, decidimos subir até ao Pico da Esperança, o ponto mais alto de S. Jorge. Não dava para perder um só bocadinho destes dias.

Percorríamos o caminho de terra batida, contornando e subindo montes, quando deparamos com a nossa "amiga" Ina sentada à beira do caminho a descansar e a comer uns frutos secos. Sempre de chapéu vermelho. Por aqui? Que engraçada coincidência. Sim, porque não tínhamos planeado aquele passeio. A Ina tinha subido desde Velas, nem sei a quantos quilómetros, a caminhar desde as dez, hora a que o barco chegou!

Nós estávamos de boca aberta porque ali as subidas são a sério, quanto mais com a casa às costas...

Também vão até ao Pico da Esperança? Já vos apanho!


E apanhou, junto ao sítio onde se despenhou um avião em Dezembro de 1999... 

Lá a vimos subir, pequenina, sempre a andar.
Fizemos o resto do percurso juntos. Eram quase seis horas e as nuvens começavam a envolver-nos. Chegados à cratera, ao cimo, nós tínhamos que voltar para trás, uns cinco quilómetros até ao carro. A Ina ía descer pelo outro lado... Onde iria dormir? Não sabia, algures, quando anoitecesse. 
O Pico da Esperança, S. jorge
Convém dizer que por ali não há vivalma. A densidade populacional é muito baixa. As povoações são todas lá em baixo, junto ao mar. Ela queria chegar à Calheta que se avistava lá em baixo, no lado sul da ilha, longíssimo...

Entretanto, soubemos que estava a estudar neuro-biologia e queria fazer o doutoramento... Talvez voltasse à Horta, Faial, para seguir num veleiro até ao Reino Unido. Havia um inglês que estava a recrutar tripulação para levar o veleiro para Inglaterra mas ela estava hesitante em seguir com ele.

Entretanto, caminhava, smartphone (Samsung) na mão, com o google maps, gps, sem hesitações.  Despedimo-nos no cimo do Pico da Esperança. Talvez nos encontremos amanhã. E encontrámos. 

No dia seguinte, fizemos o caminho da Fajã dos Cubres até à Fajã do Santo Cristo, a mais conhecida pela dimensão da sua lagoa, cinco quilómetros para cada lado, "junto ao mar".
Sobe, desce, um extasiamento para a vista, agora em baixo. 


Caminho até à Fajã de Santo Cristo, S. Jorge
Voltávamos, ensopados em suor pois o nível de humidade é elevadíssimo, numa subida difícil, quando surge a Ina, em sentido contrário, a mesma roupa, a mochila maior que ela, desta vez com o apoio de um bastão, ai não. Tinha dormido debaixo dumas árvores na descida, tinha ficado com tudo molhado por causa da humidade mas de manhã tinha feito o percurso da Fajã d' Além, muito puxada, descida e subida aos esses, tínhamos que lá ir. Belíssima. Imperdível, disse ela! 

Mas como conseguia já estar ali!? Andando. Queria fazer a montanha que sobe desde a lagoa do Santo Cristo para o cimo da ilha e depois atravessar a ilha para ir dormir no parque de campismo da Calheta... Não será demais, perguntei, advinhando o cair da noite antes do destino. Já eram cinco e, por muito rápido que caminhasse, precisaria dumas cinco horas para tal percurso.

Logo se vê, respondeu. Despedimo-nos, convictos que a voltaríamos a encontrar no dia seguinte, ou noutro. Mas não. Lamento não ter feito uma foto, não ter ficado com um contacto. 

Fiquei fascinada com as andanças da Ina. Seria eu capaz de me meter assim ao mundo, a pé, sozinha? Então e todas as questões operacionais, menos românticas, como a higiene pessoal? Ou a solidão da noite? O escuro da noite na montanha, naquele isolamento belíssimo mas assustador quando as nuvens descem e o vento sopra forte e gelado? E se adoecesse? É certo que aos trinta é tudo mais leve...

Foi por tudo isto que me lembrei da Ina quando faltou a luz e fiquei na escuridão sem qualquer perigo do conforto da minha casa.

Quem não gostava de ter feito algo assim? Partir. Largar tudo e todos, chegar a um destino num país com uma língua imperceptível, caminhar, decidir para onde rumar no momento. Ter coragem para o fazer.

Lembro o Nuno Ferreira, jornalista que há uns anos percorreu Portugal e os Açores a pé e partilhou essa experiência em livro. 

O conhecimento que se consegue caminhando é tão diferente. E caminhar é maravilhoso.

No cimo do Pico da Esperança, S. Jorge

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Botas.


Onze anos e meio e muitos quilómetros depois, acho que este foi o último grande percurso das minhas amadas botas. 


Agora permanecem na varanda com o objectivo de secarem bem. Comprei uma cola super forte que me garantiram colar a sola. Esta, sem aviso, descolou precisamente quando, lá em baixo, em plena Fajã d 'Além, na magnífica ilha de S. Jorge, me preparava para iniciar a íngreme subida, depois de terem resistido à dura descida debaixo dum autêntico dilúvio. 

O baraço azul encontrado no chão salvou-me aguentando-se até ao fim do caminho, pedra após pedra. 

Será que recuperam? Ou a confiança está perdida?

A verdade é que ainda não me atrevi a tentar repará-las com receio de estarem incapazes para novas aventuras.

Nestas andanças, as botas fazem parte de nós e deviam ser eternas!