quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Algarve do Futuro

Foi com curiosidade e emoção que li este livrinho "O Algarve do Futuro na Perspectiva Ecológica", que contém a conferência proferida por M. Gomes Guerreiro em Setembro de 1977. 


Veio ter comigo de forma improvável, directamente duma feira de livros usados, realizada em Santarém. Bastaram dois almoços solitários para o ler, metade em cada um. 

A "perspectiva ecológica" intrigou-me na minha ignorância do tema.
O começo conquistou-me imediatamente para estas páginas de imenso valor, remetendo para um Algarve sonhado de bem-estar repartido e possível que não veio a acontecer. 

"A verdade é que a nossa Província, radiosa, álacre e seca, habitada por um povo alegre e palrador, de convívio fácil e desprendido, só produz canseiras - só é fecunda a partir do trabalho árduo e permanente obedecendo a perspectivas ecológicas correctas, com empresários conscientes e com mão-de-obra qualificada".

O profundo conhecimento da região, da terra e das suas possibilidades, os caminhos que o autor aponta quer para a agricultura quer para o litoral, emocionam, especialmente quando sabemos, trinta e sete anos depois, que não foram seguidos.

Toda a conversa é feita com paixão e com esperança no futuro. "O nível de vida e de bem-estar dependem apenas da nossa vontade, do nosso esclarecimento e do esforço aplicado a um projecto que concite o interesse comum".




Li este texto com uma mágoa imensa feita de nostalgia daqueles anos de fé na mudança e de tristeza pela incapacidade colectiva que não transformou o Algarve na região onde "a radiação solar, o ciclo hidrológico e o homem que aí vive" produziriam uma sociedade de desenvolvimento integrado.

Li este texto com o prazer pela sua escrita fluída e rica, capaz de misturar termos técnicos com palavras cheias que esquecemos pelo desuso... serra xistosa e sianítica e barrocal jurássico, calcário e pedregoso.

Não foram só as saudades deste futuro sonhado para o Algarve que me atacaram. 

Foi principalmente o sentimento de revolta pelo desperdício de um caminho de construção sustentada. Desperdício do conhecimento e do saber que aproveitaria todos os recursos duma região em favor "de crescimento desenfreado que em si veicula a injustiça e a instabilidade".  




Passaram quase quarenta anos mas o discurso de Gomes Guerreiro continua actual. 


Permite imaginar como seria aquela terra e aquele litoral se não se tivesse insistido em erros de destruição de um eco-sistema pelo qual somos todos responsáveis. 

Por inércia, permitimos que se deitem fora caminhos sem aprofundar, sem tirar lições, em recomeços superficiais que hipotecam qualquer futuro sustentado e feliz. 

domingo, 19 de outubro de 2014

Aproximação à pobreza.



A propósito do dia dedicado à erradicação da pobreza senti necessidade de dizer  alguma coisa. Depois achei que os números divulgados sobre o nosso país dizem tudo. Talvez não tudo. 

Um em cada quatro portugueses está em risco eminente de pobreza. 
Há cada vez mais pessoas com pouquíssimo e uma minoria com muitíssimo. Aqui e no mundo.

Dantes, não percebia o que isso significava embora achasse que sim. Com efeito, não dá para perceber quando trabalhamos, recebemos um salário decente todos os meses e levamos a nossa vida confortavelmente, entre tarefas e compromissos quotidianos que deixam muito pouco espaço para outras realidades.

Tendo nascido na província, numa família de classe média, vivi sempre bem.
Houve períodos de maior abundância e outros que mostraram a efemeridade da coisa. Mas deu para manter um bom nível, não sentir grandes dificuldades. Os tempos também não eram os do consumo desenfreado de hoje. Não causava qualquer sofrimento viver sem grande parte das coisas que hoje parecem imprescindíveis.

Apenas há uns anos, quando surgiu a tão falada crise,  pude acompanhar de perto amigos em dificuldades. E começar a perceber o que é tentar viver com 300€ ou 400€ todos os meses, decentemente, pagar contas, alimentação mínima, aceder à net para aceder ao mundo, manter a dignidade. 

A dignidade já fugida à maioria dos sem casa e sem abrigo, dos sem nada, que vivem de esmolas e do esquecimento de si, sem lutar por mais que um sítio para estender a tralha e dormir.

Ultimamente, pude eu própria sentir como é difícil viver com o dinheiro muito limitado, quando todos os gastos têm que ser pensados. Quando os cinco euros gastos naquela esplanada num café e numa água podem afectar o futuro incerto. 

Esta aproximação à pobreza dá para perceber como é duro e triste. Limitador. Inibidor. Desmotivador. Vivendo na pobreza, qualquer acção - protestar, participar, ir, manifestar - implica gastos complicados de suportar. 

Não foi fácil entender isto. O mecanismo... Compreender que quem menos tem mais indiferente fica às decisões políticas, aos impostos, à barbárie, fechando-se no seu mundo cujo objectivo é apenas a sobrevivência. 

Por isso, gostei desta frase que vi numa faixa em pleno Largo Camões: 

POBREZA É FOGO QUE ARDE SEM SE VER

Este fogo que arde sem se ver, sente-se e queima. 

Nos olhares ostracizantes dos urbano-chiques trendy com quem se partilha a cidade (sente-se do Príncipe Real ao Chiado, respirando o mesmo ar, mas sendo um dos quatro). 
Na invisibilidade de existir cada vez menos por não participar (sem dinheiro para o consumo, para o lazer, para a troca).  
Na possibilidade do inconseguimento (sempre é útil esta palavra...) sem retorno. 
Na percepção de que é demasiado fácil, demasiado fácil mesmo, e demasiado rápido cair num gueto (onde os outros sentem o mesmo fogo e não podem importunar) ou na máxima solidão.

Na pobreza instalada ou na aproximação a esta, o medo vence devagarinho. Precisamente quando já não há nada a perder. Vence silenciando as vozes pela fome e pela humilhação.

Os donos disto tudo sabem-no bem e insistem. Talvez só se satisfaçam quando os números forem outros, três em quatro, no risco eminente de pobreza e eles forem o um, na certeza de riqueza.

No mundo, o um por cento já o é.


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Outro tempo.


Tenho saudades do tempo em que o colectivo fazia parte da vida. Da vida do dia-a-dia, naturalmente.

Pelo menos, a memória que tenho dos tempos da minha juventude é a de toda a gente ter causas, ideologia, preocupação com a sociedade e com a construção do futuro, com os outros. Diferentes causas. Mas colectivas, naturalmente.

O colectivo estava lá, em cada decisão e em cada acção. A intervenção social fazia parte do viver e afectava o individual. Sem peso. Sem obrigação. Era geral. Com divergências e conflitos. Sem medo.

Apesar de a globalização, na altura, não ser facilitada pelos vastos meios tecnológicos e de comunicação dos dias de hoje, a curiosidade com o mundo acontecia. 
Os acontecimentos lá fora eram consumidos e vividos, acompanhados com entusiasmo.

Agora, dá-se o contrário. O individual domina, naturalmente. Com o seu egocentrismo. Sem foco. Sem entusiasmo. Com medo. Com indiferença. Com ignorância.

Não gosto. Não vejo o mundo melhor. Existem demasiadas situações terríveis em que a dignidade humana é desprezada, em que a violência extrema acontece perante a passividade da maioria

Há excepções. Há sempre.Também houve no passado quando se viveram situações semelhantes. E, depois, também foi tarde demais.