quarta-feira, 13 de julho de 2016

O Verão de 1976.

Conheci o Durão Barroso em 1976. 

Foi logo quando vim viver para Lisboa por decisão da minha mãe. 

Nasci em Faro, sempre lá vivi e gostava. Da janela do meu quarto, via a ria toda, a Ilha do Farol ao longe, as ondas do mar rebeldes nos dias de temporal ou de Inverno. Da janela da cozinha, na parte detrás da casa, via-se a ria até ao aeroporto, um pouco da ilha de Faro e os poentes que enchiam o céu e o mar e o ar de cor de rosa-laranja. 
No outro lado, via-se ao longe a serra, com destaque para o Cerro de S. Miguel.

Faro era uma cidade de província pequena, onde quase todos se conheciam. Vivíamos na altura no prédio mais alto da cidade, em plena avenida 5 de Outubro, no último andar, numa excelente casa que marca a minha adolescência. 
Talvez se lá fosse agora não a achasse tão grande mas, na altura, era. 

No meu quarto, à noite, muitas vezes à luz da vela, nos anos de 1975-76, pintava cartazes a tinta vermelha, às escondidas da minha mãe, para colar no liceu no dia seguinte. 
Muitas vezes, eram poemas de Bretch e de outros. 
Escrevia e desenhava um "jornal" feito a stencil, chamado o Horizonte Vermelho, de que guardo ainda alguns exemplares. Pertencia à FEML (Federação dos Estudantes Marxistas-Leninistas), a organização do MRPP para os estudantes. Tinha 15 anos.


Foi engraçado rever isto. Este número foi editado na altura das eleições para a direcção da associação de estudantes e havia uma luta de via ou de morte entre as diferentes forças políticas. Devo ter escrito alguns destes items e feito os desenhos, isso é certo.
Nesse tempo, quase todos os dias havia pancadaria no liceu. Com os da associação de estudantes que eram do CDS e drogados, ou com os do PCP, que eram social-fascistas, ou os da UDP que eram concorrentes...

Quando foi o 25 de Abril tinha 14 anos e, rapidamente, passei do mundo católico e privilegiado em que vivera até aí para a luta pelo marxismo-leninismo. 

No liceu, comecei a frequentar umas sessões de leitura colectiva de O Capital, de Karl Marx, e outros livros como O Materialismo Dialéctico, com o meu namorado da altura. 
Foi assim que entrei para o MRPP. 

Foram anos incríveis de aventura e aprendizagem. 

Não parava em casa, mal via os meus pais ou irmã. 
A actividade, para além das aulas, claro, era muita. Havia RGAs (reunião geral de alunos) quase todos os dias e havia que preparar as mensagens, treinar os discursos, havia cartazes para fazer e colar no átrio do liceu, o único sítio onde era proibido (o que me valeu 8 dias de suspensão em 1976), participar em reuniões, vender o Luta Popular na rua e pedir fundos porta a porta. 
Dei asas à minha rebeldia, até aí circunscrita à escrita de um diário e de poesia e a tropelias de bicicleta e pseudo-aventuras a imitar Os Cinco.

Esta foi a minha grande escola para a minha futura actividade profissional. 

Em miúda era de uma timidez atroz e foi com a militância partidária que a perdi. 
Tive que ser capaz de falar em público, apregoar frases e bater à porta de desconhecidos a pedir dinheiro para a causa. 

Nesses Verões, não fui à praia pois isso era considerado burguês. Abandonei a equitação que praticava e adorava pela mesma razão. Tornei-me ateia militante. 
Apesar do muito calor, só calçava botas de trabalhador rural e vestia umas grossas camisas de pescador que comprei em Olhão. Ainda as tenho. 

Claro que sou a do cabelo curto e camisa de pescador.
Já era Maria-rapaz antes. Usava o cabelo muito curto desde os 11 anos quando o cortei por causa duma série francesa que passava na televisão. Por isso, do ponto de vista da imagem, estava de acordo com os códigos da época. 
Vestia calças de bombazina que tinha comprado em Ayamonte, sim porque não havia em Portugal, pelo menos na província, e de ganga. Mas só tinha um par de cada que eram religiosamente estimadas.

Afastei-me das minhas primas, quase irmãs, que tinham optado pela UEC do PCP ou do MES, para já não falar do corte total com algum amigo que fosse da UDP.

E lá seguia, feliz e contente. Safei-me de grandes sovas devido aos camaradas de Olhão e ao meu pai que ameaçava qualquer um que se atrevesse a tocar-me. Quando o COPCON invadiu o liceu e desatou a bater na malta, escondi-me no ginásio e nada me aconteceu.

Fiz grandes amigos que ainda hoje mantenho. Ficámos ligados por laços muito fortes. Foram só 4 anos da minha vida mas valeram a pena e não os trocaria por nada.

Em Agosto de 1976, a minha mãe comunicou-nos que vínhamos viver para Lisboa. 
Tinha concorrido para uma escola cá, comprado uma casa em troca com a de Faro, decidido mudar de cidade. E lá viemos.

Não havia margem para traumatismos, pelo menos connosco. Foi deixar tudo e todos e vir para o desconhecido. Para uma casa pequena onde tinha que partilhar o quarto com a minha irmã (que já era PSD na altura), ir para um liceu fascista, o Maria Amália Vaz de Carvalho (a minha mãe esperava que eu acalmasse isolando-me dos camaradas que dominavam o D. Pedro V) e recomeçar a militância na FEML de Lisboa... onde tudo era diferente, desconhecido e cujo dirigente era o Durão Barroso!

Conheci-o, pois, há precisamente 40 anos, nestas circunstâncias. Felizmente, a sua saída do MRPP não demorou. Mas aqueles meses deram para perceber o personagem e não esquecer. Na época, já tinha as características pessoais que fazem jus à maior parte das críticas que andam por aí a propósito do seu percurso e novo cargo.

Secretamente, odiava-o. Só não abandonei o partido logo porque havia outras pessoas, essas fantásticas. 

Campeões.

Já não me lembro de quando foi a última vez que senti isto...

Emoção e união, força e solidariedade, orgulho. Estar no meio do povo, anónima, ser só mais uma a aplaudir mas sentir-me parte dum todo.


Tenho pena que o motivo seja o futebol que considero um ópio do povo. Mas que tem momentos fantásticos e mágicos como o de ontem. 


Impossível não participar na festa, não sentir a alegria, não estremecer com o hino cantado por tanta gente. 


Portugal, todos nós, precisávamos deste mimo, desta efémera glória, desta vitória concretizada por um grupo de jovens que perderam o medo e, destemidos, derrotaram os vencedores habituais.

É o nosso grito colectivo contra tanta dívida, banca falida, maus governos, fiscalidade, perda, dor, desgraça.  
Um dia, dois, tres? Talvez mais. 

Hoje acordámos capazes de tudo mudar, fomos prá rua, cantámos e aplaudimos, conversámos com o vizinho do lado, sonhámos.

Amanhã pode voltar tudo a ser como dantes mas este dia ninguém nos tira!