sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

2016.

Cá estamos outra vez no fim dum ano. Pressionados a fazer balanços. Ou, no mínimo, a olhar para trás e perceber como estamos depois de mais um ano de vida. E a desejar coisas boas e positivas para o ano novo, ainda que sem qualquer crença na sua concretização.

Desde que me lembro, detesto estes dias. Particularmente, o seu ponto alto que é a meia-noite de dia 31 e a obrigação de celebrar. Desde que me lembro que me sinto infeliz neste dia. Ou apenas melancólica. Ou talvez apenas ansiosa e apreensiva.

Tento lembrar-me da passagem do ano de 2006 para 2007, há dez anos, onde estava eu? Detesto números ímpares, em especial os com um sete.

Ah, já me lembro! Em 2006, estava em Londres, em casa do meu querido e saudoso amigo Zé Laranjo. Passei lá uns dias. Havia festa em casa dele, comida, copos, música boa, animação, amigos. A mim, só me apetecia estar sozinha, ir para o frio da rua, caminhar até ao rio (então ele morava perto, em Westminster) e ver o fogo de artifício no meio da multidão. O que não aconteceu. Fiquei na sala tentando sem êxito fingir alegria, fugindo como podia da dança (um dos meus horrores). Acho que acabei por ir para o quarto cedo, tristíssima, enquanto ouvia a animação ao fundo na sala, com uma pena imensa da minha incapacidade de me divertir num ambiente tão afável e confortável. Tudo isto perante a perplexidade do Zé e dos outros que não conseguiam entender o meu estado de alma. Nem eu! 

Tal e qual como quando em miúda queria participar mas a minha timidez e insegurança o impediam. Não me lembro bem do dia seguinte mas devo-me ter voltado a sentir bem, a aproveitar todos estarem a dormir para caminhar pelas ruas de Londres.

As minhas melhores "passagens de ano" foram ou sozinha (acho que na de 2008 estava engripada e fiquei em casa, aconchegada no sofá, arriscando não comer as 12 passas e feliz a beber vinho do Porto) ou a dois, jantar melhorado e muito amor.

Aproximam-se estes dias e volto a ficar melancólica, com uma apatia triste inexplicável. Os que me rodeiam perguntam se estou bem. O meu marido (é verdade, esta é uma inovação do ano) inquieta-se e mima-me. O meu filho marimba e a minha mãe já não liga.
Não tenho nenhuma razão concreta para este estado de alma. Tenho conforto, amor, alguma saúde.

Não me apetece fazer balanços. 2016 foi um ano extraordinário para mim. Inesquecível a menos que alguma demência ou Alzeimer me roubem a memória. 

2016 começou com a perda de uma pessoa da minha vida, que continua sempre presente. Tão próximo como se não tivesse morrido. Essa coisa sinistra e certa da vida que nos custa tanto aceitar. Que dói tanto. Que marca sem piedade quem fica. Certos que partir é pior. A dor na alma não sai, apenas acalma por incapacidade de outra solução.

2016 foi depois correndo, iluminando-se, e trouxe a consolidação de um amor antigo. Trouxe decisões antes impensáveis, como voltar a casar. Mudanças radicais e profundas de que não me arrependo, como sair da casa onde vivi trinta e quatro anos e recomeçar noutro lugar. Reorganização. Promessa de sempre ficar, amar, estabilizar. Coisas que estavam arredadas de mim.

2016 confirmou a dificuldade em trabalhar e ser devidamente pago. 

2016 confirmou as piores suspeitas das alterações da ordem do mundo. Preparou-nos para esperar pior em 2017.

É isso. Não consigo sentir-me bem com o mundo neste estado. Reconheço perfis na humanidade que julgava banidos, ou pelo menos, esquecidos. Reconheço a redução da crença num mundo melhor. Vejo a guerra, a violência, a injustiça e a ausência de tolerância como impossíveis de conter. 

O cenário entristece-me.

Claro que seguimos em frente com a nossa vida, o nosso dia-a-dia, esperando que a desgraça demore a chegar aqui. Com uma esperança interior de que talvez nos safemos entre os pingos da chuva, como antes da globalização. 

Claro que seguimos em frente, esperando ter saúde para ir levando, esperando o sucesso dos filhos, a longa vida dos pais, a vida boa, fazendo planos de futuro, como sempre.

Nada pára o tempo e é certo que não voltamos para trás, antes tudo continua.

Amanhã tentarei não comer 12 passas acompanhadas de 12 desejos, nem beber champanhe de que não gosto.

Amanhã vou esforçar-me por passar uma noite normal entre amigos, fazendo brindes ao bem-estar e aos planos de vida. Amanhã tentarei não me lembrar de que a seguir a um ano bom, é bem possível vir um bera, ou até mais que um, e só depois poderá haver outro melhor.

Amanhã tentarei apenas viver o momento e celebrar com humildade a vida boa que tenho tido, sorrindo pelos meus queridos mortos, sorrindo pelos meus queridos vivos, abraçando os presentes e beijando o meu amor que me aquece todas as noites. 

Bom ano!


sábado, 10 de dezembro de 2016

A possibilidade outonal do afastamento.

Não me lembro de viajar pelo Norte em pleno Outono, ou no quase Inverno. 

De Viana do Castelo a Freixo de Espada à Cinta, ou à Beira interior, o dourado domina, alindando os sítios mais inóspitos. Até entre os pedragulhos escuros e gelados de Almeida à Guarda, surgem carvalhos dourados a reverter a fealdade habitual da paisagem por ali.


Afastada uns dias, poucos, de Lisboa, da televisão e sem tempo para grande recolha de informação na net, pode-se ficar de repente noutro mundo onde o tempo passa devagar e a contemplação ganha espaço. 

Mesmo, na noite, o livro gostado em leitura cai das mãos perante o sono demolidor, ajudado pelo quente dos abafos. 

A banal constatação sobre o isolamento que o afastamento provoca, não mais que uma verdade de La Palice, a mim cria sempre alguma angústia. Tenho dificuldade em estar desligada. 

Detesto SPAs ou aquilo que penso serem. Locais de aborrecido sossego, cheios de música de passarinhos, velas e piscinas, onde o corpo deve ser supostamente separado do cérebro e deixar-se levar por mãos de diligentes massagens, óleos e cremes, olhos fechados e roupões turcos desadequados.

Música de passarinhos só a real que envolve as impressionantes cores deste Outono no norte, do litoral ao interior. 

Tive sorte em apanhar um céu absolutamente límpido na Serra do Marão, com neve fresca nos pontos altos, enquanto carvalhos e castanheiros amarelo-laranja rodeavam uma impressionante auto-estrada e a travessia do recém-inaugurado túnel.

Carvalhos e castanheiros, duas espécies antigas que sempre me fascinaram. Lembro-me desse fascínio durante uma caminhada pela Serra de Montesinho, a norte de Bragança. 
Por entre castanheiros gigantes, o chão estava cheio de castanhas, envoltas na sua protectora segunda casca prometendo sabores e muitos gazes.

Quando se avança pelos montes, realmente grandes, e se começa a aproximar a região do Douro, o meu cantinho preferido, mais belo não há, aí sim, tudo o resto perde importância. Não há Trump que o estrague. A guerra da Síria e os refugiados parecem impossíveis. Qualquer catástrofe distante.

O mundo é aquilo ali, a natureza na sua força plena. O domínio do homem afirmado nas encostas plantadas de vinhas, oliveiras e amendoeiras.

Desço pelo abrigado Vale da Vilariça, de Vila Flor até Moncorvo e tudo está dourado. Por fim, quando as curvas quase me vencem, surge a harmoniosa Freixo de Espada à Cinta e parte da minha vida que será para sempre.  

Não é só a paisagem, a imponência do que nos rodeia. São as pessoas, o acolhimento, a comida, o vinho, o azeite, o frio e o calor, as casas, o rio.

Gosto de lá estar, mesmo quando à noite se dá um raro apagão, se fica sem electricidade e resta meter na cama esperando a luz do amanhecer.

Mas seria capaz de ali viver todos os dias? Julgo que não. Falta-me agitação, o movimento. Talvez tudo saiba melhor por ser difícil de alcançar. Saber a pouco. Deixar saudades. Só sei que preciso voltar, de vez em quando, às "minhas" terras. 

Penso que não tenho uma mas muitas terras. Todas as que vou amando. E não consigo escolher. 

Sinto alguma culpa por gostar tanto do Norte sendo eu do sul. Nasci na cidade portuguesa mais ao sul, em frente ao mar, a poucos metros da ria Formosa. 

Regresso a Lisboa pela segunda circular e entro imediatamente no tal movimento que me parecia faltar antes. Entro também nas saudades de onde vim. Entro nos planos para o regresso ou para outras viagens. 

Só estou bem onde não estou?


quarta-feira, 30 de novembro de 2016

O sentido da vida é a morte?


Como é difícil acordar calado Se na calada da noite eu me dano Quero lançar um grito desumano Que é uma maneira de ser escutado Esse silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento Na arquibancada pra a qualquer momento Ver emergir o monstro da lagoa.
Cálice, Chico Buarque 

Há pouco fiquei de lágrimas nos olhos quando uma amiga lembrou emocionada o momento vivido há anos quando a filha esteve entre a vida e a morte. Salva no último minuto graças à competência e carinho dos médicos depois de episódios de cruel incompetência de outros.

Lembro-me muito bem da aflição, do sofrimento, da angústia terrível que aquela família viveu e também nós todos, os amigos que os acompanhavam.

A distância entre a vida e a morte é tão ténue na maioria das vezes e tão resistente noutras.

Ontem, morreu de cancro um grande amigo da minha mãe, um frade da igreja vizinha.
O Frei Armando, um senhor bem disposto, sempre pronto para a festa, que conhecíamos desde que viemos viver para Lisboa, há 40 anos. Até a minha firme desconfiança em relação aos padres desarmava face a este bom homem.

Há meses que sofria às mãos de tratamentos de quimio e radio, para prolongar a vida. Com que fim? Com que sentido? 

Infelizmente, já aprendi que, perante determinados sintomas, o desfecho é sempre o mesmo.

A cada caso, volto a afirmar que, quando me calhar a mim, não quero tratamentos inúteis para estar por cá mais uns tempos sem poder fazer nada do que gosto, falar, comer, ler, ouvir, abraçar, dar.

Mas serei capaz de tomar essa opção? Os outros à minha volta vão deixar? Porque a nossa capacidade de autonomia se perde irremediavelmente. 

Ou a esperança de sobreviver impede essa opção? Espero não saber a resposta nos próximos tempos.

Entretanto, vamos sofrendo com a perda dos que gostamos e admiramos. Este ano tem sido demais. Como se o tal Deus, dito misericordioso e omnipresente, tivesse segmentado o mercado e optado por não proteger os melhores.

Por esta e pelas outras todas, ainda mais horríveis - o abandono e a morte de milhares de crianças em cenários de guerra e de miséria toral- é que não me convence o "venham a mim os inocentes" e outras mensagens que a doutrina vende.

Vi de novo parte do belíssimo "Human". Perguntava-se qual o sentido da vida. Não sei responder. 



O filme deixa-nos envoltos na beleza do mundo e da diversidade das suas gentes. Envoltos na impossibilidade de não ser tolerante e compreensivo, bom.

O conhecimento desta diversidade fantástica (que passa também pela desigualdade fantástica de condições entre humanos) deixa-nos com um aperto no coração porque passamos os dias a ser bombardeados com o mal, todos os dias, a toda a hora. 

Destruição, morte, guerra, corrupção, injustiça, racismo, desigualdade, riqueza, pobreza, intolerância, todos os níveis de maldade grande e comezinha. 

Uma enorme lista de horrores, macro e micro, dominante no mundo, em que parece cada vez mais difícil praticar o bem, manter valores, ser íntegro, ser simplesmente humano.

O dia está cinzento e uma chuva implacável não desiste de tornar a solidão maior.

Trabalho no meu canto mas o pensamento assalta-me com cenas do passado que afectam o presente que já é futuro...

Do presente, via digital, surgem chatices relacionadas com o dia-a-dia para me tirar o sossego. Os inquilinos que estragam a casa, a contabilista que falha uma reunião marcada há muito, uma conta para pagar que não cabe no orçamento, um cliente que não responde. Nada realmente importante.

Oiço o António Zambujo a cantar Chico Buarque, canções que conheço de cor, cada palavra, desde sempre, de que gosto. Que salvam.


Foi bonita a festa, pá Fiquei contente, Ainda guardo renitente Um velho cravo para mim. Já murcharam tua festa, pá Mas certamente, Esqueceram uma semente Em algum canto do jardim Sei que há léguas a nos separar Tanto mar, tanto mar Sei também quanto é preciso, pá Navegar, navegar Canta a primavera, pá Cá estou carente Manda novamente Algum cheirinho de alecrim.
Tanto mar, Chico Buarque

  
 




 







quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Amigos.

Tão giro encontrar no facebook uma memória de há três anos sobre o papel dos amigos. 
"Os últimos dias têm reforçado a minha teoria sobre a importância dos amigos, dos amigos verdadeiros, onde incluo também a família próxima. É nos momentos difíceis que se percebe quem está e não está. Tudo isto pode parecer banal, dito e redito nas frases de auto-ajuda que abomino... mas quero agradecer aos meus amigos que não desarmam no apoio e permitem que consigamos resistir quando o mundo parece desabar.... Obrigada! 22-11.13"
Não retiro uma palavra ao que escrevi na altura. Acrescento que o tempo confirmou a sua importância. Que o tempo também deu para limpar os verdadeiros dos falsos. 

Faz três anos este mês que a minha vida profissional, logo também a pessoal, mudou radicalmente. Tudo pareceu assustador. Ficar de repente sem abrigo nem salário nem projecto. 

Como não sou de desarmar, lá fui persistindo até encontrar outro modo de vida. De que gosto apesar da brutal descida de nível que implicou. 

Estes três anos foram de tanta mudança que, olhando para trás, parecem ter passado num ápice. 

O fim de 2016 marca também o fim de algumas amarras que ajudavam a sustentar o caminho. Por isso, o próximo ano - um horrível número ímpar - é também de novo recomeço.

2017 mete algum medo mas espero aguentar-me. O medo maior é o do caminho que o mundo toma e que nunca esperei vir a experienciar. 

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Impotência.

Acordo sem energia. A garganta seca, algum ardor. Resultado do comprimido que tomei ao deitar para parar o pingo no nariz que surgiu sem tréguas ao fim da tarde de ontem.

Era só o que me faltava. Tenho tanto que fazer. Como sempre. Nunca dá jeito ficar doente. Nunca é o momento certo para nos sentirmos impotentes.

Prossigo como num dia normal mas o corpo está lento e pede descanso. Resisto hesitante. E se fosse capaz de me deitar no sofá a meio da manhã e fechar os olhos? Não para dormir, apenas para dar cumprimento ao efeito do medicamento. Não o faço, claro.

Em vez disso, escrevo no caderno uma nova lista das tarefas para a semana. As minhas listas. Quase sempre maiores que o tempo disponível.

Resisto. Trato de n coisas, pagamentos, mails de resposta, agendamentos. Às 9h da manhã está quase tudo despachado, com excepção do principal. Adiado até vir a inspiração. O processo é sempre assim. Uns dias a pensar até, em pânico de última hora, tudo se resolver.

Cada vez mais difícil. Envelhecer é uma trampa. A memória falha e, sem medir, sei que estou mais demorada, menos rápida, e não mais ponderada.

Trampa pior é o que acontece pelo mundo. O dia está de um azul magnífico mas eu tenho arrepios de frio. Espreito o mar, nítido demais no horizonte, lá ao fundo depois do casario.

Leio mais notícias e artigos sobre as eleições americanas. A desgraça do Trump confirmando o destino para que caminhamos sem retorno. 

Ficámos perdidos à procura da explicação racional e lógica para explicar a vitória de tal homem.  Há discussões, acusações, análises. Na rua das cidades americanas, há manifestações de protesto que nos alumiam uma esperança mas sabemos que não serão capazes de tirar o poder ao homem.

Escolho explicações entre os meios e opinadores que sigo. Ainda assim, parecem-me frágeis para explicar tal dano. Só quero perceber o que leva alguém que votou em Obama a votar em Trump. O desespero? O medo? O futuro roubado?  

Ninguém gostava da Hilary (nem eu, para ser franca) e a culpa parece ser muito dela que não foi emocional, nem disse frases polémicas e mentirosas, tem telhados de vidro, perdoou ao marido o bóbó da história, é rica, loura, velha e gorda. E o Trump não é rico, gordo, velho e louro? Não soma uma vida de luxúria e desfaçatez? 

Faltou aos democratas, a "esquerda" americana, a capacidade de ser alternativa... e pela Europa está a acontecer o mesmo, todos sabemos. Até na pacata e mediática Lisboa saíram da toca uns seres execráveis, neo-nazis, a gritar contra os imigrantes, arrogantes, contando com costas largas à conta do horrível Trump.

Os tempos estão difíceis e em perda constante para quem é tolerante e democrata. Os direitos das minorias? A partilha? A liberdade? Parecem ridículas. 

Sinto a moleza no corpo e não sei como consigo escrever porque os braços pedem encosto. Invade-me uma imensa sensação de impotência. 

O dia azul e a lua gigante anunciada para a noite não resolvem nada. 

Os erros e os caminhos prosseguem como se o destino fosse imutável. Como se não fosse só eu a sentir um zumbido nos ouvidos que impedem o grito "Parem!" 

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

1 de Novembro de 2016

Hoje foi "que se lixe a pseudo dieta". Apetecia-nos mesmo uma massa, esta. 


Saborosa demais, tudo no ponto certo como o meu homem sabe tão bem fazer.

O dia está ameno. Voltou a ser feriado. 

Os mortos, os nossos, que recordamos sempre com aquele aperto na alma que a ausência provoca, teriam gostado de provar o repasto. 
E nós de os ter à mesa, a partilhar conversas boas, um vinho, o prazer de estar. 

Ah como nos faltam o Duarte, o Victor, a Madalena, o Zé, o João, o Álvaro, o António, o Manuel, a Isabel, a Ana, o Jaime, a Beatriz, e outros.
 
Já são muitos os que nos faltam. É isto o passar do tempo... 

Qualquer dia somos nós a faltar à mesa, por isso, mais vale não falhar hoje, amanhã, enquanto der.

sábado, 24 de setembro de 2016

23 de Setembro.

Regressei a casa por Monsanto. Fujo ao trânsito infernal da cidade, sexta ou não, e atravesso o verde. 

Quando viro para descer pela Ajuda para Belém, aparece sempre surpreendente a vista fantástica do rio, do mar, da Arrábida, tudo belíssimo. Vê-se as ondas a rebentar entre a Trafaria e o Bugio.

Nunca parei neste caminho, não dá para encostar sem atrapalhar o trânsito. 

De qualquer modo, o que vejo nunca caberá numa imagem. 

O rio está sereno, azul esverdeado, lindo.
 
Mas na rádio as notícias são muito más. Um dilúvio de bombas em Aleppo, se é possível ainda destruir mais. Só hoje, nestes bombardeamentos, morreram 91 civis. 


Hoje, enquanto eu estive numa reunião, comprei fruta, regresso a casa, soube dos meus. 

Quantos serão crianças, velhos, novos? Bombardeamentos do governo sírio com apoio dos russos para acabar com a oposição, dizem. Sinto um aperto perante este horror.
Como continua!!???

As Nações Unidas morreram. Obama falhou. Putin não tem alma. Bashar é um assassino. O Daesh a barbárie total. A UE um escombro de gente sem rumo. 

Estamos sós.

Será que o céu em Aleppo estará também azul? Ninguém devia morrer sob um céu assim. 

Nesta foto, do ataque desta semana à coluna de ajuda humanitária à população de Aleppo, espreita o azul do céu.

Francisco existe mas está por sua conta. E Deus, onde anda?




segunda-feira, 8 de agosto de 2016

É Verão, Agosto.

É Verão, Agosto. 

Faz aquele calor excessivo que desejámos no Inverno, na Primavera e há umas semanas atrás quando o vento frio parecia persistir. 


Com mais ou menos percalços e dramas pessoais, a nossa vida segue, com conforto que chegue. Com mais ou menos bens materiais, mais ou menos condições, mais ou menos dinheiro, é Verão, vamos indo.

E o mundo também. Só sabemos dele o que aparece nos noticiários. Mais um atentado, um louco que invoca Deus para matar e ferir, mais umas trampas do Trump, mais pancadaria no Brasil nos protestos aos Jogos que Olímpicos já foram mais, mais umas ameaças económicas dos nossos donos que mais parecem vingança por falta de sol, mais fogos no país... cada vez mais banal esta lista. 


O mal banalizou-se. Já não precisamos invocar a Hannah Arendt nem o imaginário de Aldous Huxley. Já acontece. Já faz parte da nossa vida e estamos a aceitá-lo ainda com resquícios de rebelião, fraca e minoritária.


Quem não se indigna à mesa da esplanada, cerveja para refrescar, a praia no horizonte, os miúdos a brincar por perto, o trabalho adiado, petiscada marcada com os amigos?


Afinal é Verão, Agosto.


Li com dificuldade esta reportagem que a Liliana Palhinha partilhou chamando-nos a não ignorar. Com o calor custa mais ser solidário?


Talvez. Li, visualizando a vida no campo de Vial, na ilha grega de Chios, tal como visualizei a vida quando li O Admirável Mundo Novo. Com a sensação de ser possível mas com esperança que ainda não. 


Parece que a realidade nestes campos é muito pior que a descrita e imaginada, confirmam pessoas que lá estiveram. 

É Verão, Agosto, será que a nossa capacidade de indignação não consegue mais que uma passagem breve nas conversas?



The Chios Hilton: inside the refugee camp that makes prison look like a five-star hotel

"We are not here for European people to give us food. We don’t want just to be given food, or water. We are here for freedom. In Afghanistan we had some freedom, but our lives were not safe,” he said.
“You don’t know who is a terrorist, you don’t know where the terrorists are. 
“For me, it’s not important: Austria, Germany, Switzerland, Sweden. I only want to go to a safe country.”
Robert Trafford Chios, Greece Friday 22 April 2016



quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Da Coruña ao País Basco.


Foi com algum espanto que descobri o desenvolvimento da costa norte de Espanha, da Coruña ao País Basco, passando pelas Astúrias e Cantábria, descendo depois por Castela e Leão, em direcção a Portugal.

Senti sobretudo que eram cidades e locais focados na qualidade de vida das pessoas. Dos cidadãos. Dos habitantes. 

Infra-estruturas, apoios diversos para tornar agradável e fácil a vida do dia-a-dia.

Pode até não ser tanto assim mas foi o que experienciei. Mobilidade e acesso para pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, permitindo-lhes grande autonomia.

Apoio a idosos e a crianças com facilitação dos espaços, bem cuidados e preparados, sem discriminar ninguém.

Vi novos e velhos na rua, a beber um copo e a comer umas tapas. É certo que sempre foi assim em Espanha, norte ou sul, mas agora senti-o muito mais, talvez por, apesar de todas melhorias das nossas cidades, não haver este convívio diário, feito por pobres e ricos, por toda a gente. 

Ninguém fica em casa.

Pude percorrer os centros destas cidades - fiz entre 8 e 10km a pé por dia, talvez mais - sem tropeçar em pedras soltas ou cair num buraco inesperado. 

Podia tê-lo feito de bicicleta com toda a segurança pois todas as cidades onde estive - A Coruña, Santander, Bilbau, San Sebástien, Vitória, Burgos e Salamanca - têm redes de ciclovia a sério, continuadas e respeitadas pelos condutores de veículos automóveis.

São cidades feitas para serem usufruídas pelos seus moradores. Dá gosto.

Alguém me dizia que os espanhóis vivem na rua e, por isso, têm que a ter tão confortável como um lar.

O clima nem sempre é aprazível mas isso não é obstáculo. Há subidas e descidas, colinas, algumas bem puxadas, como é o caso de Santander, onde as ruas mais inclinadas nas zonas antigas têm escadas rolantes para ajudar a subida.

Para além disto, a cultura. Especialmente no País Basco, a arte está nas ruas, nos jardins, faz parte da vida das pessoas. A arte em espaços abertos é uma das características de San Sebastián, podendo admirar-se obras de grandes artistas como Eduardo Chillida e Jorge Oteiza.

E a razão inicial da minha viagem, o Guggenheim de Bilbau que é espectacular. E o Museu de Belas Artes de Bilbau que é maravilhoso. Não desiludiram. Antes espantaram. Adorei.

E que dizer dos pintxos de Bilbau? Ou de San Sebastián

Gostei de tudo nesta viagem. A mistura perfeita do antigo e do moderno. 
Descobrir Burgos, rever Salamanca, conhecer Santander, voltar à Coruña, mas o País Basco é para voltar. 

Faltam as montanhas e a costa fora dos centros. Faltam Guernica e Portugalete e muito mais.

28 de Julho

Casámos no dia 28 de Julho de 1982. 

Eu era realmente uma miúda. Com apenas 22 anos. Foram anos bons, felizes. Nasceu o João. 

Este ano não pudemos trocar as nossas mensagens, os nossos telefonemas a recordar o dia, a lembrar como valeu a pena apesar de não termos ficado juntos. 


Que falta fazes, António!



quarta-feira, 13 de julho de 2016

O Verão de 1976.

Conheci o Durão Barroso em 1976. 

Foi logo quando vim viver para Lisboa por decisão da minha mãe. 

Nasci em Faro, sempre lá vivi e gostava. Da janela do meu quarto, via a ria toda, a Ilha do Farol ao longe, as ondas do mar rebeldes nos dias de temporal ou de Inverno. Da janela da cozinha, na parte detrás da casa, via-se a ria até ao aeroporto, um pouco da ilha de Faro e os poentes que enchiam o céu e o mar e o ar de cor de rosa-laranja. 
No outro lado, via-se ao longe a serra, com destaque para o Cerro de S. Miguel.

Faro era uma cidade de província pequena, onde quase todos se conheciam. Vivíamos na altura no prédio mais alto da cidade, em plena avenida 5 de Outubro, no último andar, numa excelente casa que marca a minha adolescência. 
Talvez se lá fosse agora não a achasse tão grande mas, na altura, era. 

No meu quarto, à noite, muitas vezes à luz da vela, nos anos de 1975-76, pintava cartazes a tinta vermelha, às escondidas da minha mãe, para colar no liceu no dia seguinte. 
Muitas vezes, eram poemas de Bretch e de outros. 
Escrevia e desenhava um "jornal" feito a stencil, chamado o Horizonte Vermelho, de que guardo ainda alguns exemplares. Pertencia à FEML (Federação dos Estudantes Marxistas-Leninistas), a organização do MRPP para os estudantes. Tinha 15 anos.


Foi engraçado rever isto. Este número foi editado na altura das eleições para a direcção da associação de estudantes e havia uma luta de via ou de morte entre as diferentes forças políticas. Devo ter escrito alguns destes items e feito os desenhos, isso é certo.
Nesse tempo, quase todos os dias havia pancadaria no liceu. Com os da associação de estudantes que eram do CDS e drogados, ou com os do PCP, que eram social-fascistas, ou os da UDP que eram concorrentes...

Quando foi o 25 de Abril tinha 14 anos e, rapidamente, passei do mundo católico e privilegiado em que vivera até aí para a luta pelo marxismo-leninismo. 

No liceu, comecei a frequentar umas sessões de leitura colectiva de O Capital, de Karl Marx, e outros livros como O Materialismo Dialéctico, com o meu namorado da altura. 
Foi assim que entrei para o MRPP. 

Foram anos incríveis de aventura e aprendizagem. 

Não parava em casa, mal via os meus pais ou irmã. 
A actividade, para além das aulas, claro, era muita. Havia RGAs (reunião geral de alunos) quase todos os dias e havia que preparar as mensagens, treinar os discursos, havia cartazes para fazer e colar no átrio do liceu, o único sítio onde era proibido (o que me valeu 8 dias de suspensão em 1976), participar em reuniões, vender o Luta Popular na rua e pedir fundos porta a porta. 
Dei asas à minha rebeldia, até aí circunscrita à escrita de um diário e de poesia e a tropelias de bicicleta e pseudo-aventuras a imitar Os Cinco.

Esta foi a minha grande escola para a minha futura actividade profissional. 

Em miúda era de uma timidez atroz e foi com a militância partidária que a perdi. 
Tive que ser capaz de falar em público, apregoar frases e bater à porta de desconhecidos a pedir dinheiro para a causa. 

Nesses Verões, não fui à praia pois isso era considerado burguês. Abandonei a equitação que praticava e adorava pela mesma razão. Tornei-me ateia militante. 
Apesar do muito calor, só calçava botas de trabalhador rural e vestia umas grossas camisas de pescador que comprei em Olhão. Ainda as tenho. 

Claro que sou a do cabelo curto e camisa de pescador.
Já era Maria-rapaz antes. Usava o cabelo muito curto desde os 11 anos quando o cortei por causa duma série francesa que passava na televisão. Por isso, do ponto de vista da imagem, estava de acordo com os códigos da época. 
Vestia calças de bombazina que tinha comprado em Ayamonte, sim porque não havia em Portugal, pelo menos na província, e de ganga. Mas só tinha um par de cada que eram religiosamente estimadas.

Afastei-me das minhas primas, quase irmãs, que tinham optado pela UEC do PCP ou do MES, para já não falar do corte total com algum amigo que fosse da UDP.

E lá seguia, feliz e contente. Safei-me de grandes sovas devido aos camaradas de Olhão e ao meu pai que ameaçava qualquer um que se atrevesse a tocar-me. Quando o COPCON invadiu o liceu e desatou a bater na malta, escondi-me no ginásio e nada me aconteceu.

Fiz grandes amigos que ainda hoje mantenho. Ficámos ligados por laços muito fortes. Foram só 4 anos da minha vida mas valeram a pena e não os trocaria por nada.

Em Agosto de 1976, a minha mãe comunicou-nos que vínhamos viver para Lisboa. 
Tinha concorrido para uma escola cá, comprado uma casa em troca com a de Faro, decidido mudar de cidade. E lá viemos.

Não havia margem para traumatismos, pelo menos connosco. Foi deixar tudo e todos e vir para o desconhecido. Para uma casa pequena onde tinha que partilhar o quarto com a minha irmã (que já era PSD na altura), ir para um liceu fascista, o Maria Amália Vaz de Carvalho (a minha mãe esperava que eu acalmasse isolando-me dos camaradas que dominavam o D. Pedro V) e recomeçar a militância na FEML de Lisboa... onde tudo era diferente, desconhecido e cujo dirigente era o Durão Barroso!

Conheci-o, pois, há precisamente 40 anos, nestas circunstâncias. Felizmente, a sua saída do MRPP não demorou. Mas aqueles meses deram para perceber o personagem e não esquecer. Na época, já tinha as características pessoais que fazem jus à maior parte das críticas que andam por aí a propósito do seu percurso e novo cargo.

Secretamente, odiava-o. Só não abandonei o partido logo porque havia outras pessoas, essas fantásticas. 

Campeões.

Já não me lembro de quando foi a última vez que senti isto...

Emoção e união, força e solidariedade, orgulho. Estar no meio do povo, anónima, ser só mais uma a aplaudir mas sentir-me parte dum todo.


Tenho pena que o motivo seja o futebol que considero um ópio do povo. Mas que tem momentos fantásticos e mágicos como o de ontem. 


Impossível não participar na festa, não sentir a alegria, não estremecer com o hino cantado por tanta gente. 


Portugal, todos nós, precisávamos deste mimo, desta efémera glória, desta vitória concretizada por um grupo de jovens que perderam o medo e, destemidos, derrotaram os vencedores habituais.

É o nosso grito colectivo contra tanta dívida, banca falida, maus governos, fiscalidade, perda, dor, desgraça.  
Um dia, dois, tres? Talvez mais. 

Hoje acordámos capazes de tudo mudar, fomos prá rua, cantámos e aplaudimos, conversámos com o vizinho do lado, sonhámos.

Amanhã pode voltar tudo a ser como dantes mas este dia ninguém nos tira!


quarta-feira, 22 de junho de 2016

Solstício.








O Verão começou ontem. Quente, finalmente. A lua tem estado fantástica. Porque será que fascina tanto? O céu límpido e iluminado. A lua clareando a noite, tornando possível dispensar a luz artificial.



Estive cinco dias fora do país, dois foram de viagem, três de lazer. 

Não de descanso, antes pelo contrário. Levantar cedo para aproveitar o menor calor do início da manhã. Depois aguentar os muitos graus do dia e percorrer ruas, visitar igrejas e museus, mirar muralhas imponentes, apanhar barcos e usufruir do vento do mar, sentir a vida local, perceber as gentes. 


É o que gosto.
Pena ter que andar de avião. Tenho sempre medo quando estou lá em cima mas aguento bem se não houver turbulência. Há sempre.

Apesar das simplificações causadas pela tecnologia, os processos e os tempos são penosos para cada voo. 

O ar condicionado dos aeroportos mata-me. Ficar sentada na última fila dum voo carregado de alemães grandes assusta-me (porque se mexem tanto e vão à casa de banho desiquilibrando o aparelho?). As horas de espera entre voos só são atenuadas pelo acesso grátis à net, via wi-fi. Não me concentro muito nas leituras por causa dos constantes anúncios e chamadas. Enfim.

Mas estes são também excelentes momentos de liberdade e procrastinação. 

Liberdade para andar dum lado para o outro, podendo sempre desligar os equipamentos e ficar inacessível. Desaparecer. 

Procrastinação porque as chatices e compromissos ficam adiados até ao regresso.

Em simples cinco dias, acontecem muitíssimas coisas mas não se alteram as essenciais. Patrões e gestores que se safam impunes apesar de arruinarem empresas e vidas. O futebol no comando das emoções ainda que valha zero. A saída ou não do Reino Unido da União Europeia que é muito mais que isso. Mata-se à queima roupa por um dos lados. Quem manda mete a cabeça na areia a ver se aguenta o posto. 

Todos os dados reforçam o fim desta (des)união, tornando insuportável ouvir a defesa de mais sanções na boca do execrável Dijsselbloem ou o abandono vergonhoso de milhares de seres humanos à sua sorte, fugidos da morte e da guerra.

A parte boa do regresso é voltar a casa e aos cozinhados do meu homem, peixe fresco grelhado e legumes que precisamos emagrecer.

As televisões entediam de inutilidades. Com uma ou outra excepção que confirma a regra (RTP 2). Deixar de ver é uma libertação. Não foi o caso no regresso. Era preciso ver os episódios perdidos da série Uma Aldeia Francesa que fez parte da minha vida nos últimos meses. Ocupação nazi em França, Resistência, luta entre o mal e o bem, personagens que já faziam parte dos meus dias.  


Passei a última noite de primavera, uma rara noite quente e de luar, a ver os episódios dos dias em que não estive. Acabava ontem e era preciso perceber a história. Depois, fica o mesmo vazio de quando acabamos de ler um bom livro.

Há que recomeçar... Caminhar todos os dias depois do jantar? E ler mais!

O Mapa e o Território, do Michel Houellebecq, foi e veio a Malta, e não consegui acabar. Tal como Submissão, é absolutamente desconcertante e um excelente retrato da nossa sociedade. Fria, sem solidariedade, sem esperança.

Por coincidência, no aeroporto de Frankfurt, encontrei no suplemento de artes do FT, uma entrevista com Houellebecq. É a favor do Brexit, só podia. Gostaria muito que a saída da Inglaterra da UE fosse o primeiro sinal do desmantelamento da Europa cuja ideia considerou sempre não democrática e sem vantagens para as pessoas (ler original na foto).

A esta hora está a começar mais um jogo do campeonato europeu de futebol. O país pára. 

Portugal está por um fio e não auguro nada de bom atendendo ao que têm jogado. Não merecem passar.

O capitão, Ronaldo, esta manhã deitou à água o microfone dum jornalista do pasquim CM que o chateava. O caso tornou-se viral, com apoiantes e defensores.

Lembro-me de Marx e do ópio do povo. Aí está ele...

Volto a dizer que não gosto do que se tornou a nossa sociedade. Das escolhas. Das opções. Não é só as dos mandantes, é também as dos mandados.


domingo, 5 de junho de 2016

Primavera.

É agora a Primavera. Há flores por todo o lado. Tem chovido demais. Tem feito vento demais mas parece que é Primavera.

Nas ruas de Lisboa, as jacarandas florescem e deixam a sua marca roxo lilás. A cidade fica ainda mais bonita.

Lisboa é realmente bonita, pensei, dentro do eléctrico, de Belém para o Cais do Sodré, manhã cedo. Mesmo com obras por todo o lado e espaços degradados aqui e ali. Cada vez menos. 

O turismo impôs-se. É mau? Acho que não por muito que tenhamos que partilhar bairros e ruas, cantinhos outrora desconhecidos e vistas privilegiadas. Dantes só nossas.

Há alegria nessas zonas. Gente de todas as línguas e rostos, alturas e costumes a passar e a fotografar. A conversar, a mexer.

Os carteiristas andarão satisfeitos? Os lojistas certamente que sim. Finalmente, o comércio funciona a qualquer hora mesmo ao fim de semana. 

Fui caminhar um bocado à beira rio. Há carripanas para tudo. Cerveja, limonada, laranjada, cachorros, sandes, pastéis de nata e de bacalhau, vinho. Comes e bebes não faltam. 

Os tuk-tuks surgem de todos os lados, lançados e carregados de famílias de cabeça a dar a dar. Como é que ainda não rolou nenhuma, com aquela velocidade e os pisos esburacados, armadilhados pelas escorregadias linhas do eléctrico? 

Uma amiga desempregada tentou ser motorista de tuk-tuk mas desistiu depois de fazer uma descida desde a Graça, aos saltos e a imaginar uns brutamontes alemães a serem projectados e a estamparem-se lá em baixo, em Santa Apolónia. 

O pagamento era precário, muito precário. Ah, sim, o turismo cria muitos postos de trabalho. À hora, sem contrato, sem benefícios, sem rede. Tudo na feliz modernidade do "que giro"... e quando há que alimentar a família e pagar as contas?

Esquecia-me que estes trabalhos são para jovens sem "penduricalhos". Que vivem em casa dos pais ou num quarto alugado com amigos. Tão giro, bebes um copo, contas uma história, faz bom tempo, até dá para dormir ao ar livre.

A realidade é que as noites são frias e o futuro incerto. Cada vez mais incerto.

Não sou nova, nem jovem, nem velha, quer dizer, muito velha, penso. Estou tramada.
Falta-me a ousadia esperançosa de quem todo o tempo do mundo à frente para mudar e mudar até se encontrar. Mas também ainda não estou "tanto me faz que já não duro muito". Digo eu. Nunca sabemos.

Fico pelas coisas simples, já que o tempo escasseia.
O cheiro a maresia que vem do rio. As gaivotas a piar. O ar azul de Lisboa. O sol que ainda não aquece demasiado. Reclamar contra o vento que arrefece a noite.
Um jantar de amigos com conversa boa. Um abraço terno. Um beijo doce de carinho. Detalhes decisivos.


Ainda não fui à Feira do Livro. Quero ir mas tenho tido preguiça. Digo que não é obrigatório. Já houve anos em que não fui. O pior é se perco alguma coisa.

Limito-me a arrumar os livros na nova morada. Gosto de o fazer. Depois, fico a olhá-los, orgulhosa da minha capacidade organizativa. Clássicos portugueses, franceses, poesia, literatura estrangeira por autores preferidos, literatura portuguesa idem, restos, soltos, arte, sociedade, política, história. Limpei um a um. Não cabem todos, ficam os que mais gosto.

No meu sítio. Posso escolher um ao acaso e abrir numa página qualquer. Há tantos que gostava de reler. 
Já não vou ter tempo. Sempre o tempo a tramar-nos.

Vejo o céu. Pela janela entra o vento e o cheiro a maresia. Um sossego de domingo.

Quero só ficar por aqui a curtir, a rever coisas antigas, um poema, uma foto, uma história. 

Caminhando contra o vento, a Alegria, Alegria de Caetano que sempre associo ao António. Precisava de lhe falar, nada de especial, comentar a actualidade, o congresso do ps, o Marcelo, o mundo. Saber a sua opinião. É esta impossibilidade que mais dói na ausência da morte.

Fico por aqui. Oiço a Smooth porque ainda tenho os CDs encaixotados. O João Gilberto canta baixinho, consola-me.

Sinto uma certa culpa por este meu domingo de bem-estar quando o mundo vai como vai e pessoas como eu morrem no mar em procura de socorro... 

1 de Junho. Dia da criança

Ainda bem que as nossas crianças, mais ricas ou mais pobres, podem festejar o seu dia, felizes com as suas brincadeiras, colegas, família e amigos, passeios e presentes. Em liberdade.

As crianças são o futuro, quantas vezes o dizemos? 


Mas este dia existe sobretudo para chamar a atenção para os milhões de crianças que não o podem ser. 
Que vivem entre a fome, o trabalho escravo, a violência, a guerra. 

Algumas conseguem fugir e persistir em encontrar um lugar melhor, onde possam comer, lavar-se, brincar, aprender, sonhar. 

Está muito difícil para milhares e milhares delas que se deparam com o abandono, a solidão e a morte.

O nosso dever é fazer tudo para que cada vez mais crianças saiam dessa situação e possam ser crianças.


Não calar é um primeiro passo. Um passo que pode fazer toda a diferença porque quem cala consente.