segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Domingo ateu.


Esta tarde fui a um debate sobre a liberdade de expressão e o trabalho dos cartoonistas, no Salão Ideal, por ocasião da estreia do filme "Os cartoonistas - soldados de infantaria da democracia", de Stéphanie Valloatto. 

Não vi o filme, apenas ouvi o debate moderado por José Vítor Malheiros com a participação de António, André Carrilho, Luís Afonso e Sofia Branco.  



Gostei muito de os ouvir, ali tão próximo, num primeiro andar no centro de Lisboa, porta aberta para qualquer um. Não ouve desacordos acalorados e os presentes deviam ser todos contra qualquer limite à liberdade de expressão. A religião e o ateísmo dos cartoonistas foi discutido como condição necessária para o sentido crítico do seu trabalho.


O que gostei mais foi da simplicidade e da abertura com que falaram. E de ter tido acesso a estes artistas pois, no fim, foi possível falar com eles.

Saí dali a pensar como as redes sociais facilitaram o acesso a estas pessoas, outrora impossíveis de alcançar para quem estivesse fora do meio.

Resolvi ir espreitar a vista de Santa Catarina para o rio e a cidade, no Adamastor. 

O céu continuava cinzento mas mais claro e havia, como sempre por ali, muita gente na rua. Também muito lixo e muitas cagadelas dos queridos cãezinhos que toda a gente tem mas cujos resíduos não limpa.


Lá me safei, com dificuldade, de pisar "minas" e fiz as fotografias que a zona provoca. Por muito que se passe nos mesmos sítios de Lisboa, nunca é demais olhar, rever, descobrir, captar para guardar. 

O céu do fim da tarde no inverno. O rio, sem vento, ao contrário de ontem. A margem de lá, tão nítida. A ponte, os barcos, os telhados, as ruas, os pombos.


De regresso à Rua do Loreto, decidi experimentar um pastel de nata na Manteigaria e descer até à Sá da Costa, agora alfarrabista ou algo parecido. 

Não encontrei o que procurava, a Poética de Aristóteles. Mas trouxe um livro apropriado ao momento que vivemos e à tarde. 

Que tem muito a ver comigo.

"Porque não sou cristão" do Bertrand Russell, uma edição de 1970, da Brasília Editora, por 5€. 
O livro reúne textos escritos pelo filósofo, ao longo da sua vida de 97 anos, em que manteve as mesmas convicções hostis à ortodoxia religiosa.


Logo no prefácio, gostei de ler frases como estas:
"O problema da veracidade de uma religião é uma coisa e o da utilidade outra. E estou tão convencido da nocividade das religiões como estou da sua falsidade". 

"O mal causado pelas religiões é de duas espécies: uma depende do género de crença que exige e outra dos dogmas particulares que a compõem". 

Há dias em que as coisas vêm ter connosco, quase adivinhando a sua pertinência naquele momento. 

Continuei a descer a caminho do Rossio, encontrei uma pessoa amiga que não via há que tempos. Foi uma conversa boa. 

Apeteceu-me voltar para casa, sem cumprir o plano de passear mais pela baixa, e ficar o resto do dia com as minhas coisas, embrenhada nos meus pensamentos. 

Que domingo perfeito.




sábado, 21 de fevereiro de 2015

Sem nada ter para perder.

Foto de Alfredo Cunha, Porto, 2015

Na quinta passada vi, na SIC, a grande reportagem "Às paredes confesso", sobre pessoas que vivem entre a rua e pensões sórdidas, muitas vezes sob ameaça permanente de expulsão. 

Estas pessoas vivem em quartos alugados, sem rendimento, sem abrigo, no fio da navalha. Pessoas com e sem deficiência, desvalidos, velhos e alguns novos, de meia idade mas que parecem velhos, gastos de tanto frio, tanto sol, tanto sofrer. 

Muitos tinham uma vida organizada mas ficaram sem nada, atirados para a pobreza mais que extrema quando lhes foi retirado o RSI. A maioria nem percebe porquê. A iliteracia afasta-os de qualquer hipótese. Como preencher os novos formulários... Desconfia o governo que sejam ricos disfarçados a tentar sacar 178€ mensais, o valor máximo. 


Foto de Alfredo Cunha, Porto, 2015
Alguns apenas sobrevivem devido ao apoio das organizações de voluntariado e de assistentes sociais, em colaboração com juntas ou outras instituições, que fazem tudo o que podem para minimizar o sofrimento destas vidas.

Neste mundo dos desvalidos, dos já sem nada, há sempre uns espertalhões prontos a explorar o inexplorável, cobrando dormidas, em lugares escusos e insalubres, pelo valor do tal rendimento supostamente destinado à inserção do indivíduo. 

Pelo contacto que tenho tido com os sem-abrigo, já me tinha apercebido que devia existir um sub-mundo sinistro de aluguer de quartos para estas pessoas. 

A reportagem de João Rico é um excelente trabalho, construído com dados e factos, que mostram como, nos últimos anos, as medidas de cortes na segurança social, olhando apenas para os números e não para pessoas, resulta num enorme aumento da pobreza. 



Vi esta reportagem com um nó na garganta, entre a emoção e a revolta. Fui praguejando a cada história, a cada caso de homem ou mulher, sem hipóteses de recuperação ou de futuro, cuja vida é apenas a de tentar arranjar comida e um lugar para dormir abrigado, sem previsão de fim.


Foto de Alfredo Cunha, Portugal, 2014
Lembrei-me da Rosa que é uma dessas pessoas. Logo por coincidência, ontem de manhã cedo tocou à porta, a pedir desesperada dinheiro para uns medicamentos. 
Outra vez, sempre. Lá respondi que não tinha, que estava a despachar-me para sair, que só tinha uma nota de 20€. 

Mas, "dona", eu vou ali à bomba trocar e trago cá, volto num instante. Assim foi. Entreguei-lhe a nota. Rosa, veja lá, olhe que não tenho mais dinheiro. Ainda mal tinha tido tempo de tomar duche e a campainha de novo. Era a Rosa a dar-me os 20€ trocados.
Então não tirou os 5€ para si? Não. Estendeu-me o dinheiro e fui eu que lhe dei depois. 
Agradeceu-me, como sempre, muitas vezes. E lá foi direita à farmácia.

À Rosa também foi retirado o RSI, aumentada a renda da habitação social, aumentada a luz e o gás, a água e os alimentos. À Rosa nunca vai surgir uma oportunidade de trabalho. Porque não sabe ler, o aspecto afasta, a miséria e a dor estão marcadas na pele gasta. 
À Rosa resta pedir ajuda, cada vez mais parca. Cada vez há menos pessoas a abrir a porta, diz ela.


Foto de Alfredo Cunha, Portugal, 2014
A Rosa e os sem-abrigo, tenham ou não quarto, não têm nada. Nem nada a perder. Mas a sua capacidade de revolta está amputada. 

Não sabem, têm medo, vivem numa sociedade paralela, em que a vida é feita dum dia após o outro, na luta pela sobrevivência básica.

Discute-se, neste processo todo da troika, se houve ou não perda de dignidade.


O que são os valores destes apoios sociais senão indignidade? 
Cento e setenta e oito euros para um mês. Ou menos ainda, em muitos casos. 

Um governo que diz alto e bom som que o país está em recuperação e paga antecipadamente milhões enquanto despreza a realidade e a sua população que vive na miséria, não merece qualquer respeito.

Quanto a nós todos, os outros, temos um papel. 

Temos o poder de não nos acomodarmos, de não nos calarmos, de votar nas eleições e, com isso, tentar mudar as políticas. 
Temos sobretudo o poder de agir no terreno, em prol dos que nada têm, mudando também a nossa atitude. 


Foto de Alfredo Cunha, Porto, 2012

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Não, não somos a Grécia. Reportagem de uma manifestação.

Fui à manifestação convocada para esta tarde, com começo no Largo Camões. De apoio à Grécia, contra a troika. Contra a austeridade. Vi no Facebook. Não sei exactamente quem convocou. 

Quero manifestar-me, fazer alguma coisa mais que estar a teclar contra isto e aquilo, sentada no sofá. Sinto necessidade de agir, acho que é muito perigoso deixar que os outros o façam por nós.

Desde a manifestação de 2003 contra a invasão do Iraque, em que senti força, palavras de ordem com sentido, gente unida, nunca mais consegui voltar a ter essa sensação num protesto. 

Existiu a grande manifestação de 15 de Setembro de 2012 mas não estava em Lisboa e não fui. Acho que essa foi a última grande, com vasta participação de pessoas fora do circuito dos partidos. 

Na seguinte, de 2 de Março de 2013, já foi notória a falta de força, de energia, de gente nova. Lembro de me sentir frustrada com a ausência de palavras de ordem fortes.

A concentração no Rossio "por Kobani" teve umas dezenas de pessoas com boa vontade... 




Hoje a sensação foi pior apesar das centenas de pessoas. Que não foram milhares. Como se justificava.

Confesso que, apesar de saber que não há em Portugal uma força política agregadora com capacidade para acolher a revolta generalizada das pessoas sem partido, uma coligação como o Syriza, achei que os acontecimentos da Grécia fariam muitas saírem de casa e gritarem contra a austeridade e em apoio ao governo grego.

Mas não. Nós não somos mesmo a Grécia, nem Espanha. Nós marimbamos. Deixamos que o destino, a nossa senhora de Fátima, ou a simples inércia, decida o nosso futuro.


Na manifestação de hoje estavam sobretudo pessoas ligadas ao Bloco de Esquerda ou a outros, dissidentes ou coincidentes. 


Senti-me bastante out. Fiz todo o percurso nas filas da frente, atrás duma faixa que dizia  "o medo mudou de lado". Não conhecia ninguém, com excepção para as figuras públicas, como o António Pedro Vasconcelos que seguiu parte do caminho ao meu lado. 


Não sei quem escolhe as frases a gritar mas estas eram demasiadas e difíceis para quem não as conheça previamente. Algumas não entusiasmavam pois não faziam sentido. Pareciam quase improvisadas, com pouca sustentabilidade. 

Apeteceu-me falar com alguém da organização, que não descobri, para dizer que os slogans tinham que ser doutra forma e a direcção da manifestação também.

Só quando a Mariana Mortágua do BE pegava no megafone havia uma dose de energia que esmorecia ao fim de três ou quatro declamações.

Talvez o facto do céu estar pesado, denso de cinzento, como se fosse abater-se uma tempestade, não tenha ajudado.

A maioria das pessoas está lá a fotografar, a filmar, a fazer selfies e a escrevinhar no smartphone em vez de abrir a boca para protestar. 

Quando chegámos ao pequeno largo Jean Monnet, nada aconteceu, se houve discursos não dei por isso. Pelo menos até me ir embora, farta de esperar.


A minha tristeza não é para com os que foram, de partidos ou não, mas para com os que não foram. Estariam a celebrar o Carnaval?


A minha tristeza é por não ver a esquerda unir-se, mais centro ou mais radical, contra a austeridade, a bem do país.  

Caramba, não serão capazes de encontrar uma dúzia de pontos comuns (luta contra a desigualdade, contra a pobreza, contra o desemprego, pela recuperação económica, defesa da saúde, ensino, justiça, cultura) que os una para derrotar este governo?


Hoje tive a sensação que não era aquela a manifestação. Que o momento exige uma outra, com garra e união, que consiga envolver e tirar de casa os milhares de portugueses que reclamam contra a austeridade e as políticas de destruição do país imposta pela troika. 


Não temos nem syriza, nem podemos. Afinal, o que queremos? 

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Já passou um ano?


Já passou um ano desde que iniciei o Tripolar.

Na altura, escrevi que marcava um recomeço. O meu recomeço, um novo modo de vida.

Assim foi. Ajudou-me muito a seguir em frente. O Tripolar pôs-me à prova. 

Escrever regularmente é muito mais difícil do que eu pensava. Transmitir uma ideia, partilhar um sentimento, exprimir um pensamento. Ter leitores. Não foram assim tantos. 

Claro que, quando escrevemos, gostamos de ser lidos. Ninguém escreve só para si. Mas as audiências não são o meu objectivo. Para tal, teria que escrever outro tipo de coisas.

Hoje quero apenas agradecer a todos os que me leram, apoiaram, incentivaram. Os que leram e voltaram. Espero que continuem!





sábado, 7 de fevereiro de 2015

Da liberdade.


Finalmente, hoje podia caminhar. Sol e frio, bela junção para um sábado. 

Saí quase à uma. De casa até à Avenida de Roma. Apetecia-me uma omelete mista nos Frutalmeida e fazer os poucos quilómetros para lá e para cá, compensando uma semana sedentária e alguns doces a mais.

Gosto de caminhar, olhar à volta, fotografar isto e aquilo, um detalhe, um momento. 

No jardim do Campo Grande, naquela zona nova onde agora há campos de ténis e um bar, não se avistava ninguém. À sombra, o vento gelava. O sol aquecia redimindo todas as desventuras.

Fotografei umas palmeiras atacadas pelo maldito escaravelho vermelho, encandeada pelo sol a pique. 

Quando retomei o caminho, reparei num homem sentado num banco ao sol, a pele queimada, uma velha mochila ao lado, a fumar um cigarro gasto, um certo porte que me pareceu familiar. 

Confirmei ao passar por ele. O senhor não costuma estar no Museu do Oriente? Eu sou da CASA, das quartas-feiras, olá! Sim, como está? Como passou com tanto frio? Arranjei um cantinho abrigado, só às vezes é que o vento entra por lá. E veio até tão longe? Vim, passear e ouvir música (estávamos junto ao bar de apoio ao ténis e ouvia-se o som em fundo). Então até quarta!

Gostei tanto deste encontro. 
Fiquei a pensar na liberdade de quem não tem casa. Apesar do frio e da chuva e de todas as outras coisas. 

Penso nisto muitas vezes. Viver sem nada. Como na canção do Caetano, "sem lenço, sem documento". O despojamento total. Que liberdade. Ou não?

Tem-me apetecido escrever sobre liberdade. Já comecei e recomecei, desistindo sempre.
Há dias em que construo frases perfeitas quando vou no metro, que tiro notas, assento tópicos, lembro-me de querer referir isto e aquilo.

Depois, leio tanta coisa em que me revejo, bem escrita, bem dita, bem pensada, apoiada em estudos e conhecimento, que perco a vontade. O que posso acrescentar? Nada.

A liberdade faz parte de mim. Desde sempre. Desde miúda. Não sou de estar agrilhoada. Quando começo a sentir-me presa, estrebucho até me sentir livre outra vez.

É certo que não há liberdade individual sem liberdade geral. Num momento em que a liberdade sofre tantas ameaças, sinto ainda mais a sua importância.

Gosto de ter liberdade de dizer, de fazer, de decidir, de dar ou não dar contas, de vestir, de sair, de caminhar, de guiar, de partir, de ficar, de estar só ou acompanhada, de opinar, de protestar, de marimbar, de lutar, de cuidar, de escrever, de ler, de fotografar, de ser.

Faz hoje um mês que assassinos, em nome duma lei-religião contra a liberdade, entraram pelo Charlie Hebdo e mataram cartoonistas e jornalistas, indignando parte do mundo. Não todo.

Só passou um mês. Da emoção de ser Charlie à excitação de ser grego. 

Ainda há causas nesta sociedade que parece adormecida, tranquila na suposição da sua liberdade adquirida. 

Todos os dias, temos perdido um bocadinho dela, aqui e ali. Daqui a perdê-la completamente pode ser apenas meia dúzia de passos.


terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Revisão.


Por acaso, uma noite destas, fui ter a este texto escrito no último dia de 2013 ou talvez já no primeiro de 2014, não sei bem.

Ainda não existia o Tripolar, por isso, certamente que o publiquei no Facebook ou então, guardei-o, simplesmente, não me lembro.

Agora, mais de um ano depois, releio-o. Continua a fazer tudo sentido. 
Podia tê-lo escrito hoje. O futuro 2014 confirmou-se.



Há um ano atrás, a minha intuição fazia-me pressentir que 2013 não seria um ano bom. 

Como não gosto de números ímpares, com excepção para o cinco, atribuí às minhas superstições parvas essa sensação de perda... Infelizmente, foi um ano bera, pessoalmente e na sociedade em que vivemos. A perda aconteceu mesmo.

A desumanização da sociedade, das empresas, a falta de valores, o desprezo pela cultura, pela diferença, pelos mais velhos, a descriminação, o egoísmo extremo dos poderosos, aos seus diferentes níveis, a opção pelo superficial, pelas aparências, aconteceu demais... 

O medo cresceu. O pequeno medo individual e o grande medo colectivo (um dia, se escrever, há-de ser sobre o medo). 

Para mim foi um ano em que o mal dominou e ganhou. Claro, que o contraditório de tudo isto existiu permitindo-nos sobreviver e viver, apesar de.

Talvez, de tudo, o que mais me custou suportar, retirando daqui a dor imensa da perda de pessoas queridas, foi confirmar como a mesquinhez do ser humano, a inveja, a falta de integridade, a pequena sacanagem, a falta de solidariedade, o pequeno medo acontecem muito mais vezes e muito mais perto de nós.

Como coisa boa, em sentido contrário, a confirmação dos amigos que sempre estão nas horas difíceis, sem falhas, sem medos, para o que der e vier!

Por isso, apesar de ter sido um ano difícil para mim, acabo-o com uma sensação boa, positiva, uma certa esperança no futuro. Encerrei um período da minha vida e vou ter que recomeçar de novo. O medo existe mas, numa escala de 0 a 10, está no 4. Na mesma escala, a felicidade anda pelo 7.

Porque a sensação de liberdade pessoal que sinto ainda é dominante em relação ao medo.

2014 é número par e isso, nas minhas superstições primárias, dá- me uma certa confiança. Apesar de tudo.