segunda-feira, 30 de junho de 2014

O sul tem o tempo.




Lá longe
Inventei o dia azul
E o desejo de partir
Pelo prazer de chegar
Ao sul
Cada um tem a sina que tem
Os caminhos são sempre de alguém
ao Sul *


O sul tem o tempo, disse a minha amiga com o seu tom filosófico, logo na primeira conversa de fim da tarde, sentadas ao sol fresco do fim do dia. Isto perante o meu inebriamento face à luz, a cor, os cheiros, a beleza envolvente, a calmaria sem horas.

O sul tem o tempo, o norte tem as horas. Repetia ela, acrescentando que não se lembrava de quem disse isto. Um pensador, um filósofo de que não se lembrava do nome. A minha amiga é de Filosofia.

Eu fiquei a pensar na poesia da expressão. O sul tem o tempo. Fiquei a pensar no significado da frase. Em como é assim, realmente. O sul é o tempo, o norte as horas.

O tempo. Um vagar azul rosado pairava no ar. Eu esforçava-me por estar quieta, sem fazer nada a não ser conversar, ouvir, olhar o horizonte, beber a limonada ácida. A pensar que se estivesse em Lisboa, estaria na hora do jantar, da televisão, dos telefonemas, dum compromisso qualquer.

Ali não.Queria absorver o tempo do sul.

Tinha saído de Lisboa precisamente com esse objectivo. Direcção Sul, Algarve. Não ía para perto do mar. Iria ficar antes, depois da serra, no barrocal.

Gosto de sair a guiar, sozinha, música escolhida, dia azul, compromissos deixados atrás, a liberdade de ir estrada fora…

Parei na estação de serviço de Grândola. Bebi um café. Voltei à auto-estrada. Os quilómetros até Almodôvar quase sem ninguém. À volta só havia planícies douradas. E cegonhas. Muitas cegonhas. Não me lembro de as ver por ali, dantes. Uma rasou o carro.

Foto de VLuís 
Como pude afastar-me tanto do sul? 
Fui passando por placas de sítios que lembraram o passado, anos longínquos, memórias de bocadinhos de vida boa quase esquecidos.

De repente, reparei que o António Zambujo cantava “Ao Sul”. Coincidência?

“Lá longe / inventei o dia azul / E o desejo de partir / Pelo prazer de chegar / Ao sul / Cada um tem a sina que tem / Os caminhos são sempre de alguém / ao Sul”

Gomes Aires, Almodôvar, gosto destes nomes, sempre gostei. Como seriam actualmente? Pensei que o regresso seria por lá, por dentro daqueles sítios, por dentro daquelas terras.

De repente, já estava na Serra do Caldeirão. Ao longe, por entre os montes, à direita, o maciço da Serra de Monchique, um recorte ténue mas firme.

Que saudades do sul. O desejo de partir inventado. O prazer de chegar anunciado. A minha sina. Cada um tem a sina que tem. Os caminhos são sempre de alguém. Sempre. 

Os caminhos são sempre de alguém
Olhei para a esquerda, os montes baixos do Caldeirão, aspros, secos. A estrada antiga de cujos cheiros me lembro. Tantas vezes paramos para eu vomitar, enjoada das curvas sem fim. Do Barranco do Velho para cima. Janela aberta para ver se passava o enjoo. O meu pai travava em cima da curva e o fumo do cigarro sempre aceso atingia-me em cheio. A janela aberta para inspirar o cheiro a eucalipto, a medronho, a mato. O cheiro da serra. Ainda não sabia que o tempo era do sul.

Nem agora, serra ultrapassada com a facilidade das três vias de auto-estrada, velocidade a mais, o carro segue embalado. A vida também seguiu embalada, rápida, nas horas do norte.

Repeti “Ao Sul”, a música desta viagem, por um acaso. Deste texto.

“Ao sul / à procura do meu norte / Subo as águas desse rio / onde a barca dos sentidos / Nunca partiu”.

De barranco em barranco, já passava o de Odelouca. O meu destino quase.
Demorou de menos esta descida. Cheguei cedo. Foi o carro que embalou, a estrada deserta, o céu azul, a terra é vermelha.


Saí do carro. Tudo era verde de tantas alfarrobeiras e figueiras à volta. O cheiro. O cheiro. Ah, quanto tempo. Mas isto é tão isolado, já não me lembrava deste barrocal em pleno, amiga. Desculpa mas não notas o cheiro, os cheiros?

A minha amiga ria-se. Estás espantada. Rimos. Estou espantada. Porque não vim antes? Não consegui encontrar resposta.
Isto foi antes de saber que o Sul tem o tempo.

Fora das horas do Norte, passei dois dias, com tempo. Noutro tempo, sem horas. Com outras pessoas, outras cores. Conversas com tempo à mesa, sem mesa, ao sol, com vento, no sul.

Dali não se vê o mar. Foi a primeira vez que fui ao Algarve e não vi o mar, pensei.

Foi preciso voltar. Custou. O Norte tem as horas. O Sul tem o tempo. E as bungavílias…

Decidi prolongar o Sul. Saí da auto-estrada em Almodôvar.



Meti pelo meio do Além Tejo, Alentejo, os pensamentos cheios, um turbilhão calmo de novas hipóteses, da possibilidade de outra vida.
A música e a voz do Zambujo. Ao Sul.



Castro Verde, planícies douradas, Aljustrel, minas fechadas, Ervidel, campos de girassóis, Ferreira do Alentejo, árvores que voltam e mais umas curvas, só paro no Torrão. O Torrão de barras azul forte. O Sul a ficar sem tempo. Alcáçer ainda é sul, apesar do sal.



Reentrei na auto-estrada. Voltei ao Norte com o Sul na alma.

* de João Monge e João Gil

5 comentários:

  1. Adorei o texto, Cristina! Parabéns! Bj gde

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  2. Contigo "cheguei" ao sul...que saudades eu tenho!

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  3. Este teu texto traz-me ao pensamento esta interrogação:como é que eu fui capaz de deixar
    o meu Sul.
    Bem hajas filha por este texto que escreveste que me trouxe recordações tão intensas que até senti o cheiro da terra(pura ilusão,eu sei)

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  4. Este teu texto trouxe-me ao pensamento esta interrogação:como é que eu tive coragem de
    deixar o meu sul?...
    Ao ler o que escreveste embrenhei-me de tal modo na leitura que até parecia que sentia os cheiros do barrocal algarvio.






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