quinta-feira, 10 de abril de 2014

Ter ou não ter

Tinha acabado de me sentar no sofá, frente à televisão, quando a Rosa tocou à porta. Precisava de ajuda para comprar um medicamento. Receita na mão porque a dor é toda ela. Já sabe que agora tudo mudou comigo e a minha contribuição baixou para uns dígitos que não resolvem os seus problemas, apenas dar uma ajuda. Ela sabe e agradece. A Rosa devolve-me sempre os taparweres lavados uns dias depois de lhos ter dado cheios de alguma coisa.

A Rosa é meio ou toda cigana, nunca percebi bem. Não tenho a certeza. Para mim não é importante. Não sabe ler, tem dois filhos, ambos com problemas porque ali tudo é disfuncionalidade e miséria.Há um ano, ou talvez há mais, foi-lhe retirado o RSI, considerada malandra ou milionária disfarçada. Paguei-lhe a renda algumas vezes e o gaz e a luz e a fome. Mora no bairro Padre Cruz mas tiraram-lhe a casa por não a conseguir pagar quando ficou sem o RSI...

Todas as minhas pessoas próximas conhecem a Rosa de ouvir-me falar dela. Afinal, a nossa relação já dura há mais de 20 anos. Temos a mesma idade.Às vezes, perguntam-me porque nunca trabalhou, não sei responder, só imagino a razão. Sei sim que, no agora, isso é impossível porque ninguém emprega uma mulher assim, analfabeta, pele crestada, toda dor no corpo e no olhar. Talvez beba, talvez seja falsa, talvez uma burla. Duvido. Ninguém quer ser assim, a menos que não consiga deixar de o ser.


Foto de Alfredo Cunha, 2014
Desde que deixei de poder realmente ajudar, quando fecho a porta e volto para o meu conforto, dói-me a alma. Penso, em minha defesa, que tenho que conseguir distanciar-me, já que não consigo uma solução, ainda numa de linguagem empresarial.

Quando volto ao sofá, a notícia no telejornal é sobre o brutal aumento do número de crianças com fome que levou as escolas, mesmo em período de férias, a servir almoços, nalguns casos, a deixarem levar também a refeição para a noite. Sintra, Barreiro, Évora.

Como a minha sopa. Penso como sou privilegiada, mesmo fazendo agora parte dos sem emprego, em transição...

Privilegiada apesar de ter deixado de ter um salário generoso que me permitia ser generosa com os outros. Tenho a capacidade de trabalhar. Sei ler, estudar e pensar. Tenho ideias, crenças e capacidade para andar no mercado a lutar por elas. Tenho família, amigos e amores, tenho rede. Tenho casa, abrigo, tenho luxos como um carro, duas bicicletas e pernas com pés bem calçados que me dão o privilégio de caminhar com prazer.

Uma reportagem na RTP 1 aborda a emigração durante o Estado Novo, a pobreza desses tempos, de quem saía "a salto" e vivia na miséria em França. Analfabetos como a Rosa, que fugiam por montes de pedra na escuridao da noite, sem saber bem ao que iam e tiveram que sobreviver entre barracos e lama nos arredores da sofisticada Paris. Outros, mais esclarecidos, fugiam da guerra, também para a França de Paris, ambos jovens.


Dois milhões que saíram do país naqueles anos em que emigrar era proibido.
Dois milhões que saem agora onde emigrar é enaltecido.

A dor da separação das famílias no abraço de despedida é a mesma.

Foto de João Tabarra

Há bocado li um comentário do fotógrafo Luiz Carvalho, muito espantado porque só recentemente se lembrou que quem tem hoje 50 anos não se lembra da ditadura. Eu tinha 14 anos quando foi o 25 de Abril. Ainda me lembro de muito do antes mas já não alcanço os piores tempos.

Nos vídeos de há 50 ou mais anos, falam crianças que aos 10 anos não tinham nunca ido à escola, tinham que trabalhar no campo, ajudar os pais, assegurar o sustento.
Quantas futuras Rosas? Quantos tiveram o destino traçado quando não puderam ir à escola, seja qual tiver sido a razão.



Por isso, é tão importante recordar como era este país nesses anos. Conduzido por homens cinzentos, pobre, limitado, marginal, analfabeto, sem futuro para jovens que, ou morriam na guerra ou fugiam à prisão e à mesquinhez em busca de liberdade e outros modos de vida.

Em busca da democracia.

Quatro décadas depois, apesar do imenso progresso, desenvolvimento tecnológico, abertura, conhecimento, comunicações, viagens, mundo, o retrocesso a uma sociedade parecida àquela surge em cada Rosa, em cada caso de corrupção, em cada velho abandonado, em cada criança com fome, em cada desempregado, em cada filho que parte, em cada corte, em cada discurso governamental, em cada aumento da estratificação social.

Quem tem, quem ainda tem, tem o dever de não desistir.

4 comentários:

  1. Olha, gostava de dizer que escreves cada vez melhor, com ritmo e empatia com as palavras, mas o que apetece antes dizer é que tens razão, ou seja, a beleza do texto acompanha a realidade do conteúdo. Gosto muito.

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  2. Bebi de um trago as tuas palavras senti a pele arrepiar-se e a dor de quem como tu gostaria de dar mais e não pode. Que mais posso dizer.

    Escreve, escreve muito

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  3. gostei muito deste texto, muito bem escrito! Continua krida!

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