Há dias que ando a escrever e a
reescrever sobre o 25 de Abril.
Tem sido difícil seleccionar o que dizer, principalmente porque quis relacionar acontecimentos diferentes passados nos mesmos anos setenta.
Não tenho nada a dizer sobre o golpe militar que acabou com a ditadura e instaurou a democracia. Sobre isso, nada a acrescentar.
Tem sido difícil seleccionar o que dizer, principalmente porque quis relacionar acontecimentos diferentes passados nos mesmos anos setenta.
Aurélie de Sousa http://asousa.carbonmade.com |
Não tenho nada a dizer sobre o golpe militar que acabou com a ditadura e instaurou a democracia. Sobre isso, nada a acrescentar.
Queria antes falar sobre a vida de uma adolescente no
início daqueles anos setenta, antes de 1974. Tudo surgiu por causa do
comentário do fotógrafo Luiz Carvalho sobre o facto de que quem tem hoje 50
anos já não se lembrar da ditadura… é bem verdade!
Por isso, é tão importante partilhar memórias de pessoas comuns.
Foi isso que fez Aurora Rodrigues, numa Aula Aberta da
cadeira de Antropologia e Património, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde estive esta semana.
Estava a ouvi-la contar àqueles jovens
estudantes de hoje como foi presa aos 21 anos, a idade deles, quando foi aluna
na Faculdade de Direito de Lisboa, e como foram os meses seguintes, os dias e as
noites de tortura a que foi sujeita.
Emocionei-me profundamente. Já tinha
estado no lançamento do seu livro, há três anos, em Caxias, e ouvido o seu
depoimento no programa da Antena 1, No limiar da Dor.
Ficha entrada Caxias |
Mas ali, num ambiente mais próximo,
ouvi-la, a descrever a violência brutal que sofreu em 1973, levou-me a comparar
aquela com a minha vida no mesmo ano. Apesar dos oito anos de idade que nos
separam.
A suposta “primavera marcelista” foi uma
falsidade pois os anos 70 são marcados pela intensificação da repressão
estudantil e pelo aumento da actividade torcionária da polícia política,
PIDE-DGS, pressentindo certamente a insustentabilidade da continuação do
regime.
Como disse, na mesma sessão, António Monteiro Cardoso, historiador e um dos coordenadores do livro "Gente Comum", juntamente com
Paula Godinho, no início dos anos sessenta surgiu uma vaga mundial de lutas
estudantis, cuja expressão mais visível foi o Maio de 68 em França, e que
influencia uma nova atitude no movimento estudantil português unido por questões
associativas e contra a guerra colonial.
A aula a que assisti esta semana foi a
passagem dum testemunho oral da história não oficial feita de “empenhamento
profundo em mudar a sociedade, mesmo à custa dos maiores sacrifícios” feita por gente comum.
1962_Cidade Universitária |
Ouvia aquela história, feita de dor e resistência, e só pensava nas
diferenças entre a minha vida e a desta mulher e de tantos outros
estudantes universitários à época.
Nessa altura, eu tinha 13 anos e vivia numa
pequena cidade de província, em Faro, onde nasci. Não havia universidade nem se
sabia o que se passava, pelo menos por onde eu andava.
Talvez por frequentar um curso experimental, um ensino diferente, uma suposta "abertura" do ministro Veiga Simão. O mesmo que, nos mesmos anos 70, introduziu os vigilantes,
chamados gorilas, nas faculdades.
A 12 de Outubro de 1972, um agente da PIDE matou a tiro um estudante de
Direito, José António Ribeiro dos Santos, durante uma reunião de estudantes em
Económicas, actual ISEG.
Cartaz funeral Ribeiro Santos |
Este facto contribuiu para que mesmo os mais “apolíticos” não pudessem deixar de tomar partido. O funeral de Ribeiro dos Santos foi uma enorme manifestação contra o regime, pela liberdade.
Claro que eu só soube de tudo isto depois do 25 de Abril.
Em Faro, onde não havia universidade, as
três turmas deste curso experimental (que esteve depois na origem do modelo de
ensino implementado após o 25 de Abril) funcionavam com uma imensa liberdade,
percebo agora. Como algo entre parêntesis!
Havia mais atenção a disciplinas práticas como Educação Visual e Trabalhos Oficinais. Tínhamos Ciências Humanas, que misturavam História e Geografia. E as aulas de Ciências da Natureza eram feitas de saídas para a praia para apanhar moluscos e outros seres a estudar depois em laboratório. Trabalhávamos em grupo. Aprendemos a pesquisar.
Havia mais atenção a disciplinas práticas como Educação Visual e Trabalhos Oficinais. Tínhamos Ciências Humanas, que misturavam História e Geografia. E as aulas de Ciências da Natureza eram feitas de saídas para a praia para apanhar moluscos e outros seres a estudar depois em laboratório. Trabalhávamos em grupo. Aprendemos a pesquisar.
Curso experimental |
Depois, brincava na rua, como toda a
gente. Brincava-se na rua onde se morava, no meu caso na avenida (em Faro só
havia duas avenidas, a minha era a 5 de Outubro, onde ao cimo estava o Liceu).
O brincar era feito de “ao apanha”,
corridas pela avenida e ruas limítrofes, jogos de mini-golfe na Alameda e pela
tentativa de imitar os Cinco, criando aventuras semelhantes às do grupo de
amigos, o que significava entrarmos em casas abandonadas com lanternas e fazer
vigias de desgraçados que nelas se abrigavam.
Isto pelos 10,11,12 anos. A partir dos 13, comecei a descobrir outras realidades, sobretudo através duma prima que vivia em Lisboa e passava os meses de Verão na Ilha.
Para além de partilharmos o amor pelo Cat Stevens, com destaque para Sad Lisa e Morning Has Broken, descobrimos um outro José Afonso, o das canções proibidas. Na altura, para mim, não era claro o porquê da proibição...
Isto pelos 10,11,12 anos. A partir dos 13, comecei a descobrir outras realidades, sobretudo através duma prima que vivia em Lisboa e passava os meses de Verão na Ilha.
Para além de partilharmos o amor pelo Cat Stevens, com destaque para Sad Lisa e Morning Has Broken, descobrimos um outro José Afonso, o das canções proibidas. Na altura, para mim, não era claro o porquê da proibição...
Enfim, no Verão de 1973, andávamos as
duas primas em Faro, vestidas de camisa de xadrez de pescador, suportando um calor imenso, a
cantar “A morte saiu à rua” ao pé de agentes da PSP, na tentativa de sermos
presas. Mas não chegamos a ser. Presumo que, ou cantávamos mal, ou os polícias
desconheciam a letra/música ou nem dava para perceber o que andávamos a fazer.
Foi uma frustração.
Sabia que o meu pai “era do contra”, o que quer que isso fosse, que o meu avô Aragão Teixeira tinha sido da Maçonaria e que a mãe da minha prima fazia parte dum tal MDM (Movimento Democrático das Mulheres).
Sabia que o meu pai “era do contra”, o que quer que isso fosse, que o meu avô Aragão Teixeira tinha sido da Maçonaria e que a mãe da minha prima fazia parte dum tal MDM (Movimento Democrático das Mulheres).
Não se podia namorar na via pública. Os meus primos, ligeiramente mais velhos, tinham que ir para o Liceu em passeios separados, conforme o sexo.
Para irmos a Ayamonte com a minha mãe,
atravessar o rio para comprar caramelos e calças de bombazina, era necessária autorização
da PIDE-DGS.
Mas não me lembro de mais... E tenho 54 anos.
Coisas como a minha mãe, por
ser professora, para casar ter que pedir autorização a Salazar, apresentando o registo
criminal do meu pai, soube depois, já com liberdade.
Casas com água canalizada 48%
Posso dizer que fiz parte dos privilegiados que tinham casa confortável, podiam estudar, brincar, ter acesso ao conhecimento e crescer saudável. Uma minoria.
Tenho pena de, naqueles anos 1972/74, não ter mais quatro anos e ter podido estar em Lisboa, na faculdade, para ter participado nas lutas contra a ditadura.
Estou certa que o faria, rebelde como sempre fui.
Depois do 25 de Abril, a descoberta da liberdade de expressão, da participação, do colectivo, da divergência, da sociedade, do mundo, foi uma explosão incrível de adrenalina que só podia motivar uma jovem de 14 anos.
O que me levou a envolver na política e a viver uns anos extraordinários de luta e aprendizagem. Que ficou para a vida. Apesar de perto dos 20 anos ter deixado a actividade partidária, nunca poderei deixar de ter opinião, sentir a política, ser indiferente.
Como disse Aurora Rodrigues esta semana naquela aula a que fui, a política é que foi ter com eles. Parece-me que o mesmo está a acontecer hoje. Não dá para ficar à parte e viver bem com isso. Esta sociedade é nossa. Temos uma palavra a dizer. Não podemos prescindir dela.
Na vida do antes 25 de Abril, haveria tanto para
referir. Deixo alguns números que falam por si. Dados de 1970:
Analfabetismo 26% da população
Analfabetismo 26% da população
Frequência do Ensino Secundário 5% da população
Frequência do Ensino Superior 0,9% da população
Casas com água canalizada 48%
Casas com luz eléctrica 64%
Posso dizer que fiz parte dos privilegiados que tinham casa confortável, podiam estudar, brincar, ter acesso ao conhecimento e crescer saudável. Uma minoria.
Tenho pena de, naqueles anos 1972/74, não ter mais quatro anos e ter podido estar em Lisboa, na faculdade, para ter participado nas lutas contra a ditadura.
Verão 1973 e a camisa pescador |
Depois do 25 de Abril, a descoberta da liberdade de expressão, da participação, do colectivo, da divergência, da sociedade, do mundo, foi uma explosão incrível de adrenalina que só podia motivar uma jovem de 14 anos.
O que me levou a envolver na política e a viver uns anos extraordinários de luta e aprendizagem. Que ficou para a vida. Apesar de perto dos 20 anos ter deixado a actividade partidária, nunca poderei deixar de ter opinião, sentir a política, ser indiferente.
Como disse Aurora Rodrigues esta semana naquela aula a que fui, a política é que foi ter com eles. Parece-me que o mesmo está a acontecer hoje. Não dá para ficar à parte e viver bem com isso. Esta sociedade é nossa. Temos uma palavra a dizer. Não podemos prescindir dela.
Um bom resumo do que viveste nessa altura.
ResponderEliminarSe fosse eu,com esta idade,teria mais algumas coisinhas para contar.
A mãe tinha um primo que me chamava a Maria da Fonte...
bom texto...para memória futura!
ResponderEliminarGosto.
ResponderEliminarMuito giro, cheio de evocações daquela época.
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