quinta-feira, 24 de abril de 2014

1972. 1973. 1974.

Há dias que ando a escrever e a reescrever sobre o 25 de Abril. 
Tem sido difícil seleccionar o que dizer, principalmente porque quis relacionar acontecimentos diferentes passados nos mesmos anos setenta.


Aurélie de Sousa http://asousa.carbonmade.com

Não tenho nada a dizer sobre o golpe militar que acabou com a ditadura e instaurou a democracia. Sobre isso, nada a acrescentar.

Queria antes falar sobre a vida de uma adolescente no início daqueles anos setenta, antes de 1974. Tudo surgiu por causa do comentário do fotógrafo Luiz Carvalho sobre o facto de que quem tem hoje 50 anos já não se lembrar da ditadura… é bem verdade!

Por isso, é tão importante partilhar memórias de pessoas comuns.

Foi isso que fez Aurora Rodrigues, numa Aula Aberta da cadeira de Antropologia e Património, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde estive esta semana.

Estava a ouvi-la contar àqueles jovens estudantes de hoje como foi presa aos 21 anos, a idade deles, quando foi aluna na Faculdade de Direito de Lisboa, e como foram os meses seguintes, os dias e as noites de tortura a que foi sujeita.


Ficha entrada Caxias
Emocionei-me profundamente. Já tinha estado no lançamento do seu livro, há três anos, em Caxias, e ouvido o seu depoimento no programa da Antena 1, No limiar da Dor.

Mas ali, num ambiente mais próximo, ouvi-la, a descrever a violência brutal que sofreu em 1973, levou-me a comparar aquela com a minha vida no mesmo ano. Apesar dos oito anos de idade que nos separam.

A suposta “primavera marcelista” foi uma falsidade pois os anos 70 são marcados pela intensificação da repressão estudantil e pelo aumento da actividade torcionária da polícia política, PIDE-DGS, pressentindo certamente a insustentabilidade da continuação do regime.

Como disse, na mesma sessão, António Monteiro Cardoso, historiador e um dos coordenadores do livro "Gente Comum", juntamente com Paula Godinho, no início dos anos sessenta surgiu uma vaga mundial de lutas estudantis, cuja expressão mais visível foi o Maio de 68 em França, e que influencia uma nova atitude no movimento estudantil português unido por questões associativas e contra a guerra colonial.


1962_Cidade Universitária
A aula a que assisti esta semana foi a passagem dum testemunho oral da história não oficial feita de “empenhamento profundo em mudar a sociedade, mesmo à custa dos maiores sacrifícios” feita por gente comum.

Ouvia aquela história, feita de dor e resistência, e só pensava nas diferenças entre a minha vida e a desta mulher e de tantos outros estudantes universitários à época.

Nessa altura, eu tinha 13 anos e vivia numa pequena cidade de província, em Faro, onde nasci. Não havia universidade nem se sabia o que se passava, pelo menos por onde eu andava.


Talvez por frequentar um curso experimental, um ensino diferente, uma suposta "abertura" do ministro Veiga Simão. O mesmo que, nos mesmos anos 70, introduziu os vigilantes, chamados gorilas, nas faculdades.


Cartaz funeral Ribeiro Santos
A 12 de Outubro de 1972, um agente da PIDE matou a tiro um estudante de Direito, José António Ribeiro dos Santos, durante uma reunião de estudantes em Económicas, actual ISEG. 

Este facto contribuiu para que mesmo os mais “apolíticos” não pudessem deixar de tomar partido. O funeral de Ribeiro dos Santos foi uma enorme manifestação contra o regime, pela liberdade.


Claro que eu só soube de tudo isto depois do 25 de Abril.


Em Faro, onde não havia universidade, as três turmas deste curso experimental (que esteve depois na origem do modelo de ensino implementado após o 25 de Abril) funcionavam com uma imensa liberdade, percebo agora. Como algo entre parêntesis!


Havia mais atenção a disciplinas práticas como Educação Visual e Trabalhos Oficinais. Tínhamos Ciências Humanas, que misturavam História e Geografia. E as aulas de Ciências da Natureza eram feitas de saídas para a praia para apanhar moluscos e outros seres a estudar depois em laboratório. Trabalhávamos em grupo. Aprendemos a pesquisar.


Curso experimental
Fora da escola, para mim, os livros eram algo muito importante porque eram o suporte da imaginação, do sonho, eram o ser outro e o viajar impossível. Frequentavam-se as bibliotecas, trocavam-se livros, lia-se muito. Cada livro era apreciado e gostado. Marcava para sempre. Lembro-me que, pelos 12 anos, tive uma paixão pela cultura clássica grega, em especial a escultura, e lia tudo o que encontrava, até sabia umas palavras de grego.

Depois, brincava na rua, como toda a gente. Brincava-se na rua onde se morava, no meu caso na avenida (em Faro só havia duas avenidas, a minha era a 5 de Outubro, onde ao cimo estava o Liceu).

O brincar era feito de “ao apanha”, corridas pela avenida e ruas limítrofes, jogos de mini-golfe na Alameda e pela tentativa de imitar os Cinco, criando aventuras semelhantes às do grupo de amigos, o que significava entrarmos em casas abandonadas com lanternas e fazer vigias de desgraçados que nelas se abrigavam. 

Isto pelos 10,11,12 anos. A partir dos 13, comecei a descobrir outras realidades, sobretudo através duma prima que vivia em Lisboa e passava os meses de Verão na Ilha.



Para além de partilharmos o amor pelo Cat Stevens, com destaque para Sad Lisa e Morning Has Broken, descobrimos um outro José Afonso, o das canções proibidas. Na altura, para mim, não era claro o porquê da proibição... 


Até porque o meu pai tinha dois discos dele (LPs que ainda conservo), “Contos Velhos, Rumos Novos” (1969) e “Venham mais Cinco” (1973) e lá em casa falava-se dele pois era conhecido dos meus pais.


Enfim, no Verão de 1973, andávamos as duas primas em Faro, vestidas de camisa de xadrez de pescador, suportando um calor imenso, a cantar “A morte saiu à rua” ao pé de agentes da PSP, na tentativa de sermos presas. Mas não chegamos a ser. Presumo que, ou cantávamos mal, ou os polícias desconheciam a letra/música ou nem dava para perceber o que andávamos a fazer. Foi uma frustração.



Sabia que o meu pai “era do contra”, o que quer que isso fosse, que o meu avô Aragão Teixeira tinha sido da Maçonaria e que a mãe da minha prima fazia parte dum tal MDM (Movimento Democrático das Mulheres).

Não se podia namorar na via pública. Os meus primos, ligeiramente mais velhos, tinham que ir para o Liceu em passeios separados, conforme o sexo.
Para irmos a Ayamonte com a minha mãe, atravessar o rio para comprar caramelos e calças de bombazina, era necessária autorização da PIDE-DGS.

Mas não me lembro de mais... E tenho 54 anos.
Coisas como a minha mãe, por ser professora, para casar ter que pedir autorização a Salazar, apresentando o registo criminal do meu pai, soube depois, já com liberdade.

Na vida do antes 25 de Abril, haveria tanto para referir. Deixo alguns números que falam por si. Dados de 1970:

Analfabetismo 26% da população
Frequência do Ensino Secundário 5% da população
Frequência do Ensino Superior 0,9% da população

Casas com água canalizada 48%
Casas com luz eléctrica 64%


Posso dizer que fiz parte dos privilegiados que tinham casa confortável, podiam estudar, brincar, ter acesso ao conhecimento e crescer saudável. Uma minoria.


Tenho pena de, naqueles anos 1972/74, não ter mais quatro anos e ter podido estar em Lisboa, na faculdade, para ter participado nas lutas contra a ditadura.



Verão 1973 e a camisa pescador
Estou certa que o faria, rebelde como sempre fui.

Depois do 25 de Abril, a descoberta da liberdade de expressão, da participação, do colectivo, da divergência, da sociedade, do mundo, foi uma explosão incrível de adrenalina que só podia motivar uma jovem de 14 anos. 


O que me levou a envolver na política e a viver uns anos extraordinários de luta e aprendizagem. Que ficou para a vida. Apesar de perto dos 20 anos ter deixado a actividade partidária, nunca poderei deixar de ter opinião, sentir a política, ser indiferente. 


Como disse Aurora Rodrigues esta semana naquela aula a que fui, a política é que foi ter com eles. Parece-me que o mesmo está a acontecer hoje. Não dá para ficar à parte e viver bem com isso. Esta sociedade é nossa. Temos uma palavra a dizer. Não podemos prescindir dela.

4 comentários:

  1. Um bom resumo do que viveste nessa altura.

    Se fosse eu,com esta idade,teria mais algumas coisinhas para contar.

    A mãe tinha um primo que me chamava a Maria da Fonte...

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  2. Muito giro, cheio de evocações daquela época.

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