quarta-feira, 26 de março de 2014

Avenida da Liberdade

Ontem depois do almoço subi a pé a Avenida da Liberdade pelo lado esquerdo. O tempo estava frio, cinzento, chegou a chuviscar.
Uma sensação desagradável de Inverno desceu sobre a Baixa. Era cedo, nem duas da tarde ainda.
Ultimamente, tenho ido algumas vezes à Baixa-Chiado, de metro. De todas as vezes, gosto daquela Lisboa. Sempre bonita, com ou sem sol, cosmopolita e alegre.


Não podendo gastar dinheiro em viagens, aquelas ruas são uma aproximação a cidades europeias que conheço e às que não conheço mas sonho ainda vir a percorrer.
Caminhar pelas cidades, descobrir ruas, arquitecturas, pessoas e paisagens, a vida local, complementa o gozo que me dá fazer percursos íngremes e pedregosos em campos e serras.

Tenho também descido umas vezes a Avenida da Liberdade, no lado de lá, onde a Cartier, a Prada, a Vuitton ou a Gucci exibem luxos guardados por seguranças gordos de óculos escuros. Em geral, parecidos com os muitos seguranças de Obama que há bocado vi na televisão, em número que me pareceu de absoluto exagero.

Nesse lado, vive um casal de sem-abrigo já conhecido. Têm cão e uma mesa de cabeceira com uma jarra com flores ao lado dos cobertores que são a sua cama. Compõem o passeio esticando o braço aos estrangeiros, muitos, angolanos fartos que saem e entram de carros de luxo com sacos e mais sacos. Nunca os vi dar nada mas alguma coisa ganhará aquele casal para se manter por ali.

Mas ontem subi pelo outro lado. Logo nos Restauradores, alguns seres mortos vivos, esfarrapados, talvez ex-drogados, cambaleavam sem nada pedir.

Cheguei-me aos edifícios, tentando apanhar menos chuviscos. O antigo Eden, onde funcionava a Loja do Cidadão, começa a ficar com ar abandonado, sem vida, vidros sujos com restos de avisos de mudança colados. Safa-se o Palácio Foz e o elevador subindo uma glória que não temos.

Ontem uma sensação de arrepio mais fundo não me largou mais.

Pouco acima da Montblanc, com as suas canetas lindas, nos passeios sujos (não conseguimos ter passeios limpos, há sempre beatas, latas e surro propriamento dito e generalizado), uma rapariga loira, de bom aspecto, bonita, discreta, parecia uma turista, veio direita a mim. Se a podia ajudar para comer. Era mesmo à porta dum restaurante caro com porteira fardada e tudo.

Metros depois, antes do Ermenegildo Zegna, que veste muitos dos nossos ricos gestores novos ricos, daqueles que nunca dão uma esmola porque isso não resolve nada, tive que parar.



Hesitei se fotografava ou não. Senti um enjoo súbito, avancei, voltei atrás. Hesitei se fotografava. Dois homens dormiam abrigados no mármore outrora rosa dum edifício. Sem cartão, apenas cobertores sujos e cartazes colados, meio desfeitos a pedir algo. Mesmo em frente, um Ferrari preto reluzente (nunca percebi como se consegue ter os carros assim tão limpos), de matrícula bem portuguesa, fazia manobra para estacionar.

Reparei como havia muitos mais agentes da PSP, daqueles pagos pelas empresas privadas, a juntar aos seguranças privados, atentos a cada um que passava, orgulhosos dos seus equipamentos de comunicação último modelo.

Tantas vezes nos cruzamos com sem-abrigo nesta cidade. Ontem aqueles dois chocaram-me demais. Eram apenas duas da tarde e dormiam tão enrolados como alheados do mundo. Como alheadas passavam as pessoas na avenida, habituadas ao cenário.

Da porta do Tivoli Hotel saíram senhores bem vestidos de charuto, ainda que baixos e gordos, não conseguiriam sentar-se no Ferrari, estou certa.



Quando cheguei à esquina da Alexandre Herculano, espreitei a montra da Max Mara. Sempre foi a minha marca de referência. Uns vestidos lindos, uns casacos irrecusáveis que, entre o vermelho e o rosa, qualquer mulher gostaria de vestir. Espreitei os preços. Os vestidos rondavam o ordenado mínimo nacional. Os casacos entre três e quatro ordenados mínimos.

Segui para o meu workshop para pessoas em transição. Onde se discutem hipóteses de sobrevivência neste novo mundo.  
Onde se busca a esperança de não transitar para sem-abrigo.

3 comentários:

  1. O texto faz um relato bem real da actual sociedade em que vivemos.
    Também descreve a beleza da cidade.
    São as duas faces de Lisboa.

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