Ontem depois do almoço
subi a pé a Avenida da Liberdade pelo lado esquerdo. O tempo estava frio, cinzento,
chegou a chuviscar.
Uma sensação
desagradável de Inverno desceu sobre a Baixa. Era cedo, nem duas da tarde
ainda.
Ultimamente, tenho ido
algumas vezes à Baixa-Chiado, de metro. De todas as vezes, gosto daquela
Lisboa. Sempre bonita, com ou sem sol, cosmopolita e alegre.
Não podendo gastar
dinheiro em viagens, aquelas ruas são uma aproximação a cidades europeias que
conheço e às que não conheço mas sonho ainda vir a percorrer.
Caminhar pelas
cidades, descobrir ruas, arquitecturas, pessoas e paisagens, a vida local,
complementa o gozo que me dá fazer percursos íngremes e pedregosos em campos e
serras.
Tenho também descido
umas vezes a Avenida da Liberdade, no lado de lá, onde a Cartier, a Prada, a
Vuitton ou a Gucci exibem luxos guardados por seguranças gordos de óculos
escuros. Em geral, parecidos com os muitos seguranças de Obama que há bocado vi
na televisão, em número que me pareceu de absoluto exagero.
Nesse lado, vive um
casal de sem-abrigo já conhecido. Têm cão e uma mesa de cabeceira com uma jarra
com flores ao lado dos cobertores que são a sua cama. Compõem o passeio
esticando o braço aos estrangeiros, muitos, angolanos fartos que saem e entram
de carros de luxo com sacos e mais sacos. Nunca os vi dar nada mas alguma coisa
ganhará aquele casal para se manter por ali.
Mas ontem subi pelo
outro lado. Logo nos Restauradores, alguns seres mortos vivos, esfarrapados,
talvez ex-drogados, cambaleavam sem nada pedir.
Cheguei-me aos
edifícios, tentando apanhar menos chuviscos. O antigo Eden, onde funcionava a
Loja do Cidadão, começa a ficar com ar abandonado, sem vida, vidros sujos com
restos de avisos de mudança colados. Safa-se o Palácio Foz e o elevador subindo
uma glória que não temos.
Ontem uma sensação de
arrepio mais fundo não me largou mais.
Pouco acima da Montblanc, com as suas canetas
lindas, nos passeios sujos (não conseguimos ter passeios limpos, há sempre
beatas, latas e surro propriamento dito e generalizado), uma rapariga loira, de
bom aspecto, bonita, discreta, parecia uma turista, veio direita a mim. Se a
podia ajudar para comer. Era mesmo à porta dum restaurante caro com porteira
fardada e tudo.
Metros depois, antes
do Ermenegildo
Zegna, que veste muitos dos nossos ricos gestores novos ricos, daqueles que
nunca dão uma esmola porque isso não resolve nada, tive que parar.
Hesitei se fotografava
ou não. Senti um enjoo súbito, avancei, voltei atrás. Hesitei se fotografava.
Dois homens dormiam abrigados no mármore outrora rosa dum edifício. Sem cartão,
apenas cobertores sujos e cartazes colados, meio desfeitos a pedir algo. Mesmo
em frente, um Ferrari preto reluzente (nunca percebi como se consegue ter os
carros assim tão limpos), de matrícula bem portuguesa, fazia manobra para
estacionar.
Reparei como havia
muitos mais agentes da PSP, daqueles pagos pelas empresas privadas, a juntar aos
seguranças privados, atentos a cada um que passava, orgulhosos dos seus
equipamentos de comunicação último modelo.
Tantas vezes nos
cruzamos com sem-abrigo nesta cidade. Ontem aqueles dois chocaram-me demais. Eram apenas
duas da tarde e dormiam tão enrolados como alheados do mundo. Como alheadas
passavam as pessoas na avenida, habituadas ao cenário.
Da porta do Tivoli
Hotel saíram senhores bem vestidos de charuto, ainda que baixos e gordos, não
conseguiriam sentar-se no Ferrari, estou certa.
Quando cheguei à esquina
da Alexandre Herculano, espreitei a montra da Max Mara. Sempre foi a minha marca
de referência. Uns vestidos lindos, uns casacos irrecusáveis que, entre o
vermelho e o rosa, qualquer mulher gostaria de vestir. Espreitei os preços. Os
vestidos rondavam o ordenado mínimo nacional. Os casacos entre três e quatro
ordenados mínimos.
Segui para o meu
workshop para pessoas em transição. Onde se discutem hipóteses de sobrevivência
neste novo mundo.
Onde se busca a esperança
de não transitar para sem-abrigo.
Triste.
ResponderEliminaronde paira a alegria de viver?
ResponderEliminarO texto faz um relato bem real da actual sociedade em que vivemos.
ResponderEliminarTambém descreve a beleza da cidade.
São as duas faces de Lisboa.