segunda-feira, 12 de maio de 2014

O eixo do medo.

"À medida que nos libertamos do nosso próprio medo a nossa presença liberta automaticamente os outros".                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                      Nelson Mandela

Na semana passada, preparava-me para escrever sobre o medo, o pequeno medo, quando me deparei com o texto de António Guerreiro, re-publicado no The Ressabiator de Mário Moura, sobre "a privatização do microfascismo”. Achei-o perfeito.
Incentivada por um amigo numa conversa de almoço, na véspera, tinha tomado notas para escrever especificamente sobre o pequeno medo que se vive no dia-a-dia no mundo do trabalho. Decidida a vencer o meu próprio medo de o fazer.
Ao ler o artigo de A. Guerreiro, achei que este abordava aquilo de que eu tanto queria falar. Fiquei meio perdida, sem perceber se poderia acrescentar algo a tão preciso e perspicaz conteúdo. Afinal,quem sou eu para acrescentar alguma coisa a um experimentado e qualificado jornalista? Li e reli as suas palavras, curiosa sobre se teria ele vivido isto ou o sabia apenas por estudo e observação.
Precisei duns dias para me reorganizar e, ainda assim, com algum medo, ousar escrever sobre o tema, tentando acrescentar alguma coisa.
Diz ele que “Na relação das empresas com os seus “colaboradores” (este novo nome para os trabalhadores vale como uma sintoma), o clima é friendly, o chefe não é um patrão, mas um líder, e a “cultura” empresarial que se constrói é sempre de colaboração e a-conflitual, orientada para uma “missão” e determinada por uma “visão”. Por trás, sustentando esta “cultura”, está o medo, não o grande medo inculcado pelo fascismo tradicional, mas os pequenos medos que o novo fascismo gere e multiplica”. Não me lembraria de lhe chamar assim, confesso.
Talvez por, apesar do meu “processo de libertação” em curso, estar afinal ainda refém do sistema. A empresa de onde saí e a que ainda me liga muitos anos de trabalho e empenho espelha o parágrafo acima com aflitiva exactidão. 
Uma coisa é certa, o medo individual e interior, o medo quotidiano, sussurrado na chamada “rádio alcatifa” (bares e espaços de convívio), entre colegas “amigos”, é terrível. E quem tenta não praticar o medo, ou seja, agir doutra forma, é fortemente penalizado.
A moda do foco na diferença do indivíduo não passa de uma treta. A realidade mostra que é compensado quem é graxista, quem não é frontal, quem não diz o que pensa, quem vai andando, discretamente, apresentando resultados mas sem dar demasiado nas vistas.
O enorme gap entre a prática dos gestores e a visão e valores que eles próprios definem para as suas empresas é inacreditável.

O investimento em consultores externos, desde especialistas em Comunicação e Design a qualificados Coachers nacionais e estrangeiros, bem como reconhecidos oradores que trazem o último grito da moda empresarial, seria melhor empregue no melhoramento das condições de trabalho, no aumento dos salários médios e na criação real de oportunidades de crescimento aos muitos jovens escolhidos para mão-de-obra barata.

Todo um sistema de padronização de valores é dado como exemplo pela gestão de topo. 
O foco está todo numa máquina de criação de luxo induzido. Carro topo de gama, últimos gadgets, casa na praia da moda, golfe e férias na neve, degustação de vinhos e leitura do resumo do último livro comprado na Amazon.

Para a maioria dos quadros destas empresas, que atingem o management pelos 30/35 anos, este é um universo aspiracional para o qual foram formatados e do qual ficam reféns. O único modelo de vida empresarial que conhecem num mundo de sucesso em que uma falha num processo pode deitar tudo a perder. Onde o medo dessa possibilidade é constante. Onde não fazer ondas é essencial.


A competitividade entre colaboradores, nunca trabalhadores como tão bem diz A. Guerreiro, é muita apesar dos valores vigentes, formalizados em Códigos de Conduta aprovados pelas administrações com solenidade, apelarem aos métodos colaborativos, à pareceria, ao bem, numa ideologia próxima dum cristianismo inexistente.

Todo este sistema empresarial se organiza em torno do estar permanentemente “sob suspeita”, criando “um pacto de segurança para a gestão de uma paz angustiante”, falsa, sentida por todos sob um silêncio colaboracionista, reforçado em tempos de crise com o medo do despedimento. 

Pratica-se a destruição permanente da auto-estima das pessoas com a acumulação de ausências do elogio sincero e profissional.

Todo o sistema perpétua, afinal, o medo com que fomos educados, muito por causa da religião judaico-cristã que tem por base o temor a Deus.

O poder político dos últimos anos, com a sua propaganda massiva, passa uma mensagem de falta de valores, rigor e ética, reforçando a possibilidade do “vale tudo” na sociedade e, logo, nas empresas.

Neste eixo do medo, existe um momento alto. 

O momento da avaliação de desempenho, que supostamente define os destinos de um colaborador. Apesar de tentativas permanentes de melhoria e de inclusão de objectividade, quando se quer excluir um trabalhador por razões não profissionais, o seu bom desempenho substanciado em anos de boas avaliações, projectos de sucesso e provas dadas, não interessa para nada. Nada vale.

O eixo do medo assenta na fragilidade das administrações/gestores, incapazes de confiarem e repartirem poder e lucros, na sua falta de profissionalismo e na falta de prática duma verdadeira democracia empresarial. 

A meritocracia tão apregoada, segundo o modelo americano de Silicon Valley, é talvez a coisa menos praticada no nosso universo de empresas de sucesso, apesar de estar inscrita na sua comunicação qual etiqueta de marca num produto de luxo.

Dirão muitos que o “medo constante e deliberado é um estímulo necessário ao empreendedorismo, à inovação, à iniciativa”.

De facto, muitas destas empresas tem tido sucesso com este modelo e celebram-no cheias de si mesmas.

No entanto, acredito que pode ser diferente. 

Que se pode funcionar noutro modo, em que a aparência e o comportamento estejam alinhados, a ética e o respeito sejam os valores praticados e não só anunciados e o trabalho se desenvolva em harmonia e felicidade para os trabalhadores, então sim, verdadeiros colaboradores.



3 comentários:

  1. Mais um excelente texto.

    É terrível mas é verdade hoje vive-se com MEDO.

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  2. Percebes agora os avisos que eu te fazia...

    Eu desde que nasci até aos 39 anos vivi sempre nesse medo,inconsciente dele de tal
    maneira fazia parte do processo vigente...

    Tinha que deixar marcas profundas.
    O teu artigo está muito bom.

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  3. Parabéns pelo artigo, Cristina! Está excelente! É exatamente assim!

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