sábado, 21 de fevereiro de 2015

Sem nada ter para perder.

Foto de Alfredo Cunha, Porto, 2015

Na quinta passada vi, na SIC, a grande reportagem "Às paredes confesso", sobre pessoas que vivem entre a rua e pensões sórdidas, muitas vezes sob ameaça permanente de expulsão. 

Estas pessoas vivem em quartos alugados, sem rendimento, sem abrigo, no fio da navalha. Pessoas com e sem deficiência, desvalidos, velhos e alguns novos, de meia idade mas que parecem velhos, gastos de tanto frio, tanto sol, tanto sofrer. 

Muitos tinham uma vida organizada mas ficaram sem nada, atirados para a pobreza mais que extrema quando lhes foi retirado o RSI. A maioria nem percebe porquê. A iliteracia afasta-os de qualquer hipótese. Como preencher os novos formulários... Desconfia o governo que sejam ricos disfarçados a tentar sacar 178€ mensais, o valor máximo. 


Foto de Alfredo Cunha, Porto, 2015
Alguns apenas sobrevivem devido ao apoio das organizações de voluntariado e de assistentes sociais, em colaboração com juntas ou outras instituições, que fazem tudo o que podem para minimizar o sofrimento destas vidas.

Neste mundo dos desvalidos, dos já sem nada, há sempre uns espertalhões prontos a explorar o inexplorável, cobrando dormidas, em lugares escusos e insalubres, pelo valor do tal rendimento supostamente destinado à inserção do indivíduo. 

Pelo contacto que tenho tido com os sem-abrigo, já me tinha apercebido que devia existir um sub-mundo sinistro de aluguer de quartos para estas pessoas. 

A reportagem de João Rico é um excelente trabalho, construído com dados e factos, que mostram como, nos últimos anos, as medidas de cortes na segurança social, olhando apenas para os números e não para pessoas, resulta num enorme aumento da pobreza. 



Vi esta reportagem com um nó na garganta, entre a emoção e a revolta. Fui praguejando a cada história, a cada caso de homem ou mulher, sem hipóteses de recuperação ou de futuro, cuja vida é apenas a de tentar arranjar comida e um lugar para dormir abrigado, sem previsão de fim.


Foto de Alfredo Cunha, Portugal, 2014
Lembrei-me da Rosa que é uma dessas pessoas. Logo por coincidência, ontem de manhã cedo tocou à porta, a pedir desesperada dinheiro para uns medicamentos. 
Outra vez, sempre. Lá respondi que não tinha, que estava a despachar-me para sair, que só tinha uma nota de 20€. 

Mas, "dona", eu vou ali à bomba trocar e trago cá, volto num instante. Assim foi. Entreguei-lhe a nota. Rosa, veja lá, olhe que não tenho mais dinheiro. Ainda mal tinha tido tempo de tomar duche e a campainha de novo. Era a Rosa a dar-me os 20€ trocados.
Então não tirou os 5€ para si? Não. Estendeu-me o dinheiro e fui eu que lhe dei depois. 
Agradeceu-me, como sempre, muitas vezes. E lá foi direita à farmácia.

À Rosa também foi retirado o RSI, aumentada a renda da habitação social, aumentada a luz e o gás, a água e os alimentos. À Rosa nunca vai surgir uma oportunidade de trabalho. Porque não sabe ler, o aspecto afasta, a miséria e a dor estão marcadas na pele gasta. 
À Rosa resta pedir ajuda, cada vez mais parca. Cada vez há menos pessoas a abrir a porta, diz ela.


Foto de Alfredo Cunha, Portugal, 2014
A Rosa e os sem-abrigo, tenham ou não quarto, não têm nada. Nem nada a perder. Mas a sua capacidade de revolta está amputada. 

Não sabem, têm medo, vivem numa sociedade paralela, em que a vida é feita dum dia após o outro, na luta pela sobrevivência básica.

Discute-se, neste processo todo da troika, se houve ou não perda de dignidade.


O que são os valores destes apoios sociais senão indignidade? 
Cento e setenta e oito euros para um mês. Ou menos ainda, em muitos casos. 

Um governo que diz alto e bom som que o país está em recuperação e paga antecipadamente milhões enquanto despreza a realidade e a sua população que vive na miséria, não merece qualquer respeito.

Quanto a nós todos, os outros, temos um papel. 

Temos o poder de não nos acomodarmos, de não nos calarmos, de votar nas eleições e, com isso, tentar mudar as políticas. 
Temos sobretudo o poder de agir no terreno, em prol dos que nada têm, mudando também a nossa atitude. 


Foto de Alfredo Cunha, Porto, 2012

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