sábado, 4 de abril de 2015

Trilhos urbanos.

Sexta-feira santa. 

O bom num feriado à sexta-feira é que acordamos com aquela sensação de férias. O tempo morno aumenta a noção de lazer. Abrir a janela e não estar nem vento nem frio nem calor. 


Quando era miúda, e em parte da adolescência, estes três dias eram tramados por causa da morte de Cristo. 


Na altura, as três da tarde da sexta-feira santa eram um momento de temor. 

Fazia-se silêncio lá em casa. A minha mãe e avó rezavam ou recolhiam-se com ar grave. Era supostamente a hora em que Jesus Cristo morreu na cruz. 

Para mim, tudo estava associado ao roxo e, por sua vez, à morte e ao medo. Era como se uma nuvem muito escura passasse por ali, ameaçadora. Julgo que era apenas o meu medo do veludo roxo que o Senhor levava na procissão dos passos, as lágrimas de sangue, a coroa espetada na carne, os olhos de dor. 

Para este estado de alma, muito contribuía o facto de esta ser uma época em que só se podia comer peixe o que, para mim, nessa idade, era um grande tormento. Peixe, roxo, morte, medo.

A religião a dominar pelo medo grande, pelos medos pequenos.

No sábado, respirava-se. Jesus morto e sepultado já não ameaçava ninguém. Podia-se brincar sem problemas. 


No domingo, ressuscitava e havia almoço festivo, amêndoas, folar de canela com ovo, feito pela tia Zézinha, tão bom. Nunca mais comi igual.


Não me lembro de alguma vez ter sido muito convicta com a cena da ressurreição. Nunca percebi como Jesus acordava dois dias depois, todo fresquinho, vestes lavadas e brancas e ascendia ao céu. Que pai (Deus) tão estranho, lembro-me de pensar.


Depois, perdi a fé, deixei de praticar e estes dias, à conta da religião dos outros, foram durante muitos e muitos anos, de férias na praia, no Algarve, de sol e mar, de primos, de intervalo. Essenciais para aguentar até ao Verão.


Hoje, continuo descrente, talvez muito mais. Por isso, estes dias são de lazer e fazer.


De manhã, peguei na bicicleta e saí para uma volta pequena. Pensei ir até ao Saldanha e voltar para trás mas acabei por ir andando, descobrindo isto e aquilo. Um dia destes dou-me mal por tanto olhar à volta...

Apesar do tempo nublado, a vista do Parque Eduardo VII é sempre magnífica. O Jardim Amália Rodrigues estava cheio de gente. Um casal italiano pediu-me para lhes tirar uma foto.

Tinha realmente saudades de pedalar, levemente. Para além de ver a cidade, pedalar é muito bom para pensar.


Depois do dia de ontem, em que morreu o Manoel de Oliveira, aos 106 anos, e o economista José Silva Lopes, aos 82, duas personalidades marcantes para o nosso país, cada um na sua área, pensei em como viver mais de cem anos é uma excepção que confirma a regra. 

A longevidade de Oliveira sempre me lembrou Saramago quando, no seu "As Intermitências da Morte", se pára de morrer. Não estamos preparados para tal acontecimento. Gostaríamos de não morrer? 

Na história de Saramago, foi o caos quando as pessoas deixaram de morrer. 
Toda a sociedade, a vários níveis, está organizada para o fim. Deixar de existir esse ponto final seria muito complicado, como se percebe no livro, um dos meus preferidos.

Na febre dos comentários à morte de Manoel de Oliveira, algumas pessoas disseram que não imaginavam a morte do realizador. Como não?


Fui pedalando e pensando nestas coisas e nos acontecimentos que marcam os nossos dias. 


Ontem, morreram 148 jovens numa universidade no Quénia, indiscriminadamente atingidos a tiro por um grupo islamita. Tantos como as pessoas mortas no avião feito despenhar nos Alpes por um louco suicida.


Ontem, o mundo conseguiu um grande feito para a paz, com a assinatura do acordo sobre o programa nuclear do Irão, prevenindo o uso de armas nucleares. Assinado entre os Estados Unidos e o Irão, algo improvável. Deve-se e Obama, que resiste à pressão de Israel.


Na luta entre o mal e o bem, o homem morto na cruz há dois mil anos, pela salvação dos homens, não parece ter alcançado esse objectivo mas antes contribuído para o seu contrário.

Voltei para casa por caminhos novos, trilhos urbanos.

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