domingo, 10 de abril de 2016

Estranhezas*

Confesso que me custa suportar o caminho que o mundo toma. De regressão. 

Pelo menos, é o que percepciono. Apesar de todos os fantásticos avanços tecnológicos que, como a Inteligência Artificial, vão rivalizar connosco no desempenho do dia-a-dia.


Robot em 2016
Olhando só para a minha vida, até podia não me ralar tanto a cada má notícia e seguir o meu percurso, entre as coisas boas e as menos boas. Viver o dia-a-dia mais afastada da vida dos outros. Que não conheço. Não consigo.

Sinto-me no mundo e não quero viver à parte dele, numa redoma egocêntrica.

Custa demais sentir as mãos atadas. Ou sentir-me como tal. Poder fazer muito pouco. Demasiado pouco.

Os acontecimentos dignos de indignação, de comentário, de aflição, dignos de acção sucedem-se tão rapidamente que se torna praticamente impossível apreender todos. 


A fome e a guerra na Síria
A internet veio dar a possibilidade de fazer alguma coisa a partir do sofá. Assinar uma petição da Amnistia Internacional, partilhar documentos e artigos, exprimir a nossa revolta. Ter opinião pública. Para o bem e para o mal. Ficar com a sensação de dever cumprido sem o ser. 

É insuficiente. O que mais me chateia nestes tempos é a dificuldade de acreditar que podemos mudar o mundo. Aos poucos essa crença no poder das massas se unirem e lutarem contra a desigualdade, a injustiça, pelos direitos humanos básicos, foi-se reduzindo. Colectivamente. 

É preciso alguma dose de auto-confiança para persistir na possibilidade que os povos, as pessoas comuns sem poder, a grande maioria anónima pode determinar o seu destino e o dos seus países ou regiões.

O poder do dinheiro, o desenvolvimento dum capitalismo desenfreado e desumano (considerando que antes era mais moderado), o crescimento das desigualdades entre ricos e pobres, o aparecimento de movimentos fascistas e ditatoriais em nome de seitas e religiões, a descriminação das mulheres, o abandono das crianças, o crime, a morte sem pudor de inocentes, a fome, a guerra, a morte arbitrária, têm vindo a não deixar grande margem para o optimismo num mundo livre e mais igualitário.

Talvez seja pessimista e sejamos apenas vítimas do conhecimento global. Antes não se sabia da matança de parte do mundo. 

Não sei. Sinto o mundo como sinto o meu corpo actualmente. Dividido ao meio. 

No último livro de Salmon Rushdie "Dois anos, oito meses e vinte e oito noites", que acabei de ler há dias, a mensagem é a de que os homens se podem tornar razoáveis quando perceberem que a narrativa do conflito em que sempre vivem pode ser alterada e que as diferenças de raça, local, língua e costumes, crenças podem deixar de os dividir.

Passagem final do livro de Salmon Rushdie que refiro.

No livro, esta possibilidade de felicidade e razoabilidade só acontece depois de uma brutal destruição da sociedade, depois de muito sofrimento e morte. 
Depois de muita degradação e desgraça. Da perca em massa de vidas humanas. 
Depois da destruição do mundo a que chamaram um tempo de estranhezas. 

Estamos lá?

* termo utilizado por Salmon Rushdie no seu último livro

2 comentários:

  1. todas as civilizações terminam com a grande insatisfação do povo . Normalmente c a morte de muitos inocentes...
    Sempre achei que estamos no fim desta civilização ...há muito tempo!

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  2. Imagina a estranheza que tudo isto representa para a mãe e para a
    maioria da minha geração?!

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