sexta-feira, 8 de maio de 2015

Lá fora.

Desenho de José Mateus

Lá fora a minha rua está branca de algodão que o vento espalha. 
Tomo café sentada na sala e espanto-me com o manto branco que cobre tudo. Estamos em plena primavera e as árvores em plena vida.
Há quem espirre sem fim, eu só me aflijo com a hipótese do interior da casa ser também colonizado pelos farrapos de algodão branco que os plátanos espalham.


O dia está morno, a passar de azul para um cinzento triste. 


Tão triste como a notícia da morte. A morte duma pessoa conhecida, de quem gostava, duma mulher que admirava. Um choque quando soube. Tinha deixado de a "ver" no Facebook. Como outras pessoas que desaparecem do nosso ângulo de visão e na voracidade dos dias, nem reparamos. Só tarde demais.

Sempre o mesmo raio de doença que parece seleccionar os bons, só os bons. Que merda! 

Fiquei muito triste, a tarde ficou estranha. Senti um arrepio profundo, um alerta. Um alerta para não desperdiçar a vida.

Horas antes, tinha recebido uma mensagem desesperada duma amiga. Uma mensagem de desistência perante a impossibilidade de conseguir trabalho. O optimismo e a alegria tão seus a definharem, a darem lugar à tristeza, à impotência. 

A impotência para fazer algo, um nó em procura duma solução, de ajuda, o que fazer?

A tarde cada vez mais nublada. Uma dor no peito. Uma revolta isolada.



Fotografia de cat

Somos o que escolhemos ser, diz o primeiro-ministro numa biografia de si. 
Tornou-se um homem feio, grosso. Nem o fato de Verão, cinza claro, ajuda. Inauguração de época. Troca com o azul escuro do Inverno. Mau corte.

Penso numa velha questão. A aparência reflecte o ser, o comportamento, a atitude, a postura? Nem sempre mas quase sempre. Neste caso, sem dúvida.

Penso na quantidade de sacanas que detém o poder neste país e noutros, indiferentes ao sofrimento de tantos, defendendo que o país está melhor, ainda que cheio de pessoas com a vida desfeita.

Ignoram os factos do alto dos seus fatos. Ou será tudo fato agora?

Cada vez conheço mais pessoas com a vida destruída, pessoas honestas, que querem apenas trabalhar, ganhar para comer, para ter o mínimo, pessoas capazes de dar, que alguém contabilizou como destinada a não receber.

No outro dia à noite, numa cerimonia de prémios para jovens talentos, mais de um terço dos vencedores estava fora do país. Nas várias categorias. A sua ausência do palco reflecte o suposto país melhor. O trabalho e a criatividade destes jovens fazem acreditar na capacidade humana de resistir e encontrar caminhos alternativos.


Mas há sempre os que não são excepcionais, ou apenas não tiveram a oportunidade de o ser. A maioria. Que não se ouve.

Somos o que escolhemos ser: um empresário corrupto, um político indigno, um subserviente arrogante, um inculto sem espelho, um mentiroso militante, um gestor sem escrúpulos. 
São estes os modelos que o poder defende?

Tudo indica que sim.

Lá fora a vida continua, o ar branco, nem frio nem quente, indiferente a quem passa. 


Uns espirram, alergia ao rubro. 
Outros sucumbem, face à desesperança. 
Outros morrem, simplesmente.

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