domingo, 19 de outubro de 2014

Aproximação à pobreza.



A propósito do dia dedicado à erradicação da pobreza senti necessidade de dizer  alguma coisa. Depois achei que os números divulgados sobre o nosso país dizem tudo. Talvez não tudo. 

Um em cada quatro portugueses está em risco eminente de pobreza. 
Há cada vez mais pessoas com pouquíssimo e uma minoria com muitíssimo. Aqui e no mundo.

Dantes, não percebia o que isso significava embora achasse que sim. Com efeito, não dá para perceber quando trabalhamos, recebemos um salário decente todos os meses e levamos a nossa vida confortavelmente, entre tarefas e compromissos quotidianos que deixam muito pouco espaço para outras realidades.

Tendo nascido na província, numa família de classe média, vivi sempre bem.
Houve períodos de maior abundância e outros que mostraram a efemeridade da coisa. Mas deu para manter um bom nível, não sentir grandes dificuldades. Os tempos também não eram os do consumo desenfreado de hoje. Não causava qualquer sofrimento viver sem grande parte das coisas que hoje parecem imprescindíveis.

Apenas há uns anos, quando surgiu a tão falada crise,  pude acompanhar de perto amigos em dificuldades. E começar a perceber o que é tentar viver com 300€ ou 400€ todos os meses, decentemente, pagar contas, alimentação mínima, aceder à net para aceder ao mundo, manter a dignidade. 

A dignidade já fugida à maioria dos sem casa e sem abrigo, dos sem nada, que vivem de esmolas e do esquecimento de si, sem lutar por mais que um sítio para estender a tralha e dormir.

Ultimamente, pude eu própria sentir como é difícil viver com o dinheiro muito limitado, quando todos os gastos têm que ser pensados. Quando os cinco euros gastos naquela esplanada num café e numa água podem afectar o futuro incerto. 

Esta aproximação à pobreza dá para perceber como é duro e triste. Limitador. Inibidor. Desmotivador. Vivendo na pobreza, qualquer acção - protestar, participar, ir, manifestar - implica gastos complicados de suportar. 

Não foi fácil entender isto. O mecanismo... Compreender que quem menos tem mais indiferente fica às decisões políticas, aos impostos, à barbárie, fechando-se no seu mundo cujo objectivo é apenas a sobrevivência. 

Por isso, gostei desta frase que vi numa faixa em pleno Largo Camões: 

POBREZA É FOGO QUE ARDE SEM SE VER

Este fogo que arde sem se ver, sente-se e queima. 

Nos olhares ostracizantes dos urbano-chiques trendy com quem se partilha a cidade (sente-se do Príncipe Real ao Chiado, respirando o mesmo ar, mas sendo um dos quatro). 
Na invisibilidade de existir cada vez menos por não participar (sem dinheiro para o consumo, para o lazer, para a troca).  
Na possibilidade do inconseguimento (sempre é útil esta palavra...) sem retorno. 
Na percepção de que é demasiado fácil, demasiado fácil mesmo, e demasiado rápido cair num gueto (onde os outros sentem o mesmo fogo e não podem importunar) ou na máxima solidão.

Na pobreza instalada ou na aproximação a esta, o medo vence devagarinho. Precisamente quando já não há nada a perder. Vence silenciando as vozes pela fome e pela humilhação.

Os donos disto tudo sabem-no bem e insistem. Talvez só se satisfaçam quando os números forem outros, três em quatro, no risco eminente de pobreza e eles forem o um, na certeza de riqueza.

No mundo, o um por cento já o é.


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