Foi logo quando vim viver para Lisboa por decisão da minha mãe.
Nasci em Faro, sempre lá vivi e gostava. Da janela do meu quarto, via a ria toda, a Ilha do Farol ao longe, as ondas do mar rebeldes nos dias de temporal ou de Inverno. Da janela da cozinha, na parte detrás da casa, via-se a ria até ao aeroporto, um pouco da ilha de Faro e os poentes que enchiam o céu e o mar e o ar de cor de rosa-laranja.
No outro lado, via-se ao longe a serra, com destaque para o Cerro de S. Miguel.
Faro era uma cidade de província pequena, onde quase todos se conheciam. Vivíamos na altura no prédio mais alto da cidade, em plena avenida 5 de Outubro, no último andar, numa excelente casa que marca a minha adolescência.
Talvez se lá fosse agora não a achasse tão grande mas, na altura, era.
No meu quarto, à noite, muitas vezes à luz da vela, nos anos de 1975-76, pintava cartazes a tinta vermelha, às escondidas da minha mãe, para colar no liceu no dia seguinte.
Muitas vezes, eram poemas de Bretch e de outros.
Escrevia e desenhava um "jornal" feito a stencil, chamado o Horizonte Vermelho, de que guardo ainda alguns exemplares. Pertencia à FEML (Federação dos Estudantes Marxistas-Leninistas), a organização do MRPP para os estudantes. Tinha 15 anos.
Nesse tempo, quase todos os dias havia pancadaria no liceu. Com os da associação de estudantes que eram do CDS e drogados, ou com os do PCP, que eram social-fascistas, ou os da UDP que eram concorrentes...
Quando foi o 25 de Abril tinha 14 anos e, rapidamente, passei do mundo católico e privilegiado em que vivera até aí para a luta pelo marxismo-leninismo.
No liceu, comecei a frequentar umas sessões de leitura colectiva de O Capital, de Karl Marx, e outros livros como O Materialismo Dialéctico, com o meu namorado da altura.
Foi assim que entrei para o MRPP.
Foram anos incríveis de aventura e aprendizagem.
Não parava em casa, mal via os meus pais ou irmã.
A actividade, para além das aulas, claro, era muita. Havia RGAs (reunião geral de alunos) quase todos os dias e havia que preparar as mensagens, treinar os discursos, havia cartazes para fazer e colar no átrio do liceu, o único sítio onde era proibido (o que me valeu 8 dias de suspensão em 1976), participar em reuniões, vender o Luta Popular na rua e pedir fundos porta a porta.
Dei asas à minha rebeldia, até aí circunscrita à escrita de um diário e de poesia e a tropelias de bicicleta e pseudo-aventuras a imitar Os Cinco.
Esta foi a minha grande escola para a minha futura actividade profissional.
Em miúda era de uma timidez atroz e foi com a militância partidária que a perdi.
Tive que ser capaz de falar em público, apregoar frases e bater à porta de desconhecidos a pedir dinheiro para a causa.
Nesses Verões, não fui à praia pois isso era considerado burguês. Abandonei a equitação que praticava e adorava pela mesma razão. Tornei-me ateia militante.
Apesar do muito calor, só calçava botas de trabalhador rural e vestia umas grossas camisas de pescador que comprei em Olhão. Ainda as tenho.
Claro que sou a do cabelo curto e camisa de pescador. |
Vestia calças de bombazina que tinha comprado em Ayamonte, sim porque não havia em Portugal, pelo menos na província, e de ganga. Mas só tinha um par de cada que eram religiosamente estimadas.
Afastei-me das minhas primas, quase irmãs, que tinham optado pela UEC do PCP ou do MES, para já não falar do corte total com algum amigo que fosse da UDP.
E lá seguia, feliz e contente. Safei-me de grandes sovas devido aos camaradas de Olhão e ao meu pai que ameaçava qualquer um que se atrevesse a tocar-me. Quando o COPCON invadiu o liceu e desatou a bater na malta, escondi-me no ginásio e nada me aconteceu.
Fiz grandes amigos que ainda hoje mantenho. Ficámos ligados por laços muito fortes. Foram só 4 anos da minha vida mas valeram a pena e não os trocaria por nada.
Em Agosto de 1976, a minha mãe comunicou-nos que vínhamos viver para Lisboa.
Tinha concorrido para uma escola cá, comprado uma casa em troca com a de Faro, decidido mudar de cidade. E lá viemos.
Não havia margem para traumatismos, pelo menos connosco. Foi deixar tudo e todos e vir para o desconhecido. Para uma casa pequena onde tinha que partilhar o quarto com a minha irmã (que já era PSD na altura), ir para um liceu fascista, o Maria Amália Vaz de Carvalho (a minha mãe esperava que eu acalmasse isolando-me dos camaradas que dominavam o D. Pedro V) e recomeçar a militância na FEML de Lisboa... onde tudo era diferente, desconhecido e cujo dirigente era o Durão Barroso!
Conheci-o, pois, há precisamente 40 anos, nestas circunstâncias. Felizmente, a sua saída do MRPP não demorou. Mas aqueles meses deram para perceber o personagem e não esquecer. Na época, já tinha as características pessoais que fazem jus à maior parte das críticas que andam por aí a propósito do seu percurso e novo cargo.
Secretamente, odiava-o. Só não abandonei o partido logo porque havia outras pessoas, essas fantásticas.
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