Pela hora do almoço, talvez pelas duas, o ar começa a ficar cheio de flocos de algodão dos choupos. Como há algum vento, esta "neve" entra por todo o lado, cobre a rua, a varanda, prende-se nas plantas, corre pelo chão. Não dá para tomar café na varanda.
Parece que são duas a quatro semanas disto. É Primavera.
É bom morar rodeada de árvores. Ainda por cima, árvores que vi crescer.
Envolvem o prédio, dum lado e doutro, ultrapassando-o em altura. Cada estação tem as suas coisas, sombra demais no Inverno, frescura e mosquitos no Verão, pólens na Primavera, folhas douradas no Outono.
Às vezes, os ramos dos pinheiros crescem batendo nas janelas e temos que esperar meses pela autorização municipal de corte. Quando há vento forte, convém não deixar o carro por perto.
A Primavera traz coisas, à semelhança dos pólens. Há uma descompressão quando acabam os dias escuros, frios e molhados do Inverno. Há sempre algo novo.
Há bocadinho, tocaram à porta. Era um vizinho dos antigos, de sempre, com o envelope de papel almofadado da revista Granta na mão. "Estava ontem na sua caixa de correio meio a sair, alguém podia tirar, resolvi guardar, aqui está".
Agradeci, feliz. Renovei a assinatura apesar dos cortes do último ano e meio. Entre gastar numa roupa qualquer e receber os quatro números da Granta, optei por esta.
Receber um novo número é sempre um momento feliz. Foi mesmo antes do almoço. O que permitiu leitura fresca. E que leitura!
O tema do nº 5 da revista é "Falhar melhor", uma expressão de Beckett. Como diz Carlos Vaz Marques, o director, esta expressão "é de tal modo poderosa, que corre o risco de vir a banalizar-se".
Revendo as palavras do escritor irlandês que serviram de mote para os textos desta revista: "Tudo desde sempre. Nunca outra coisa. Nunca ter tentado. Nunca ter falhado. Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor".
Mesmo a calhar. Tentar outra vez é comigo. Agora. Falhar também.
Durante o almoço, leio o primeiro artigo, num ápice. E com um nó. "Morrer é mais difícil do que parece", do Paulo Varela Gomes. A situação dele. Agora. Que texto incrível, forma e conteúdo. A força de alguém na disputa entre a vida e a morte. A realidade do autor.
Fico a pensar, durante o café, enquanto olho os flocos de algodão na rua. Incontornáveis. Como a morte.
A vida está em pleno na força da rapariga que vem limpar a minha casa uma vez por semana. Despede-se e parte de bicicleta. Comprou uma das minhas bicicletas. Acordámos um valor, pago em serviço durante umas semanas.
Sorrio perante a alegria dela. Fico com a sensação de a ter influenciado nesta opção. E assim, vou revendo a bicicleta que estava parada, sem uso.
Recomendo cuidado, repito instruções. Vejo-a pedalar rua abaixo.
Volto à cozinha. Na TSF, oiço os Sinais do Fernando Alves. Voz boa, temas acutilantes.
Sento-me para escrever. Hoje é o dia em que o Acordo Ortográfico se torna obrigatório. Não me passa pela cabeça aplicá-lo. Pelo menos, na minha escrita privada.
A rua está coberta de branco. Penso em tentar outra vez sabendo que falhar de novo é sempre certo. Sabendo também que há sempre a hipótese de resultar.
Mesmo a propósito, faz hoje 50 anos que foi gravado (I can't get no) Satisfaction.
quarta-feira, 13 de maio de 2015
sexta-feira, 8 de maio de 2015
Lá fora.
Desenho de José Mateus |
Lá fora a minha rua está branca de algodão que o vento espalha.
Tomo café sentada na sala e espanto-me com o manto branco que cobre tudo. Estamos em plena primavera e as árvores em plena vida.
Há quem espirre sem fim, eu só me aflijo com a hipótese do interior da casa ser também colonizado pelos farrapos de algodão branco que os plátanos espalham.
O dia está morno, a passar de azul para um cinzento triste.
Tão triste como a notícia da morte. A morte duma pessoa conhecida, de quem gostava, duma mulher que admirava. Um choque quando soube. Tinha deixado de a "ver" no Facebook. Como outras pessoas que desaparecem do nosso ângulo de visão e na voracidade dos dias, nem reparamos. Só tarde demais.
Sempre o mesmo raio de doença que parece seleccionar os bons, só os bons. Que merda!
Fiquei muito triste, a tarde ficou estranha. Senti um arrepio profundo, um alerta. Um alerta para não desperdiçar a vida.
Horas antes, tinha recebido uma mensagem desesperada duma amiga. Uma mensagem de desistência perante a impossibilidade de conseguir trabalho. O optimismo e a alegria tão seus a definharem, a darem lugar à tristeza, à impotência.
A impotência para fazer algo, um nó em procura duma solução, de ajuda, o que fazer?
A tarde cada vez mais nublada. Uma dor no peito. Uma revolta isolada.
Fotografia de cat |
Somos o que escolhemos ser, diz o primeiro-ministro numa biografia de si.
Tornou-se um homem feio, grosso. Nem o fato de Verão, cinza claro, ajuda. Inauguração de época. Troca com o azul escuro do Inverno. Mau corte.
Penso numa velha questão. A aparência reflecte o ser, o comportamento, a atitude, a postura? Nem sempre mas quase sempre. Neste caso, sem dúvida.
Penso na quantidade de sacanas que detém o poder neste país e noutros, indiferentes ao sofrimento de tantos, defendendo que o país está melhor, ainda que cheio de pessoas com a vida desfeita.
Ignoram os factos do alto dos seus fatos. Ou será tudo fato agora?
Cada vez conheço mais pessoas com a vida destruída, pessoas honestas, que querem apenas trabalhar, ganhar para comer, para ter o mínimo, pessoas capazes de dar, que alguém contabilizou como destinada a não receber.
No outro dia à noite, numa cerimonia de prémios para jovens talentos, mais de um terço dos vencedores estava fora do país. Nas várias categorias. A sua ausência do palco reflecte o suposto país melhor. O trabalho e a criatividade destes jovens fazem acreditar na capacidade humana de resistir e encontrar caminhos alternativos.
Mas há sempre os que não são excepcionais, ou apenas não tiveram a oportunidade de o ser. A maioria. Que não se ouve.
Somos o que escolhemos ser: um empresário corrupto, um político indigno, um subserviente arrogante, um inculto sem espelho, um mentiroso militante, um gestor sem escrúpulos. São estes os modelos que o poder defende?
Tudo indica que sim.
Lá fora a vida continua, o ar branco, nem frio nem quente, indiferente a quem passa.
Uns espirram, alergia ao rubro.
Outros sucumbem, face à desesperança.
Outros morrem, simplesmente.
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