Lá longe
Inventei o dia azul
E o desejo de partir
Pelo prazer de chegar
Ao sul
Cada um tem a sina que tem
Os caminhos são sempre de alguém
ao Sul *
O sul tem o tempo, disse a minha amiga com
o seu tom filosófico, logo na primeira conversa de fim da tarde, sentadas ao
sol fresco do fim do dia. Isto perante o meu inebriamento face à luz, a cor,
os cheiros, a beleza envolvente, a calmaria sem horas.
O sul tem o tempo, o norte tem as horas.
Repetia ela, acrescentando que não se lembrava de quem disse isto. Um pensador,
um filósofo de que não se lembrava do nome. A minha amiga é de Filosofia.
Eu fiquei a pensar na poesia da
expressão. O sul tem o tempo. Fiquei a pensar no significado da frase. Em como
é assim, realmente. O sul é o tempo, o norte as horas.
O tempo. Um vagar azul rosado pairava no
ar. Eu esforçava-me por estar quieta, sem fazer nada a não ser conversar,
ouvir, olhar o horizonte, beber a limonada ácida. A pensar que se estivesse em
Lisboa, estaria na hora do jantar, da televisão, dos telefonemas, dum compromisso
qualquer.
Ali não.Queria absorver o tempo do sul.
Tinha saído de Lisboa precisamente com
esse objectivo. Direcção Sul, Algarve. Não ía para perto do mar. Iria ficar antes,
depois da serra, no barrocal.
Gosto de sair a guiar, sozinha, música
escolhida, dia azul, compromissos deixados atrás, a liberdade de ir estrada
fora…
Parei na estação de serviço de Grândola.
Bebi um café. Voltei à auto-estrada. Os quilómetros até Almodôvar quase sem
ninguém. À volta só havia planícies douradas. E cegonhas. Muitas cegonhas. Não me
lembro de as ver por ali, dantes. Uma rasou o carro.
Foto de VLuís |
Como pude afastar-me tanto do sul?
Fui passando por placas de sítios que lembraram
o passado, anos longínquos, memórias de bocadinhos de vida boa quase esquecidos.
De repente, reparei que o António Zambujo
cantava “Ao Sul”. Coincidência?
“Lá longe / inventei o dia azul / E o
desejo de partir / Pelo prazer de chegar / Ao sul / Cada um tem a sina que tem
/ Os caminhos são sempre de alguém / ao Sul”
Gomes Aires, Almodôvar, gosto destes
nomes, sempre gostei. Como seriam actualmente? Pensei que o regresso seria por
lá, por dentro daqueles sítios, por dentro daquelas terras.
De repente, já estava na Serra do
Caldeirão. Ao longe, por entre os montes, à direita, o maciço da Serra de
Monchique, um recorte ténue mas firme.
Que saudades do sul. O desejo de partir
inventado. O prazer de chegar anunciado. A minha sina. Cada um tem a sina que
tem. Os caminhos são sempre de alguém. Sempre.
Os caminhos são sempre de alguém |
Olhei para a esquerda, os montes baixos
do Caldeirão, aspros, secos. A estrada antiga de cujos cheiros me lembro.
Tantas vezes paramos para eu vomitar, enjoada das curvas sem fim. Do Barranco
do Velho para cima. Janela aberta para ver se passava o enjoo. O meu pai
travava em cima da curva e o fumo do cigarro sempre aceso atingia-me em cheio.
A janela aberta para inspirar o cheiro a eucalipto, a medronho, a mato. O
cheiro da serra. Ainda não sabia que o tempo era do sul.
Nem agora, serra ultrapassada com a
facilidade das três vias de auto-estrada, velocidade a mais, o carro segue embalado.
A vida também seguiu embalada, rápida, nas horas do norte.
Repeti “Ao Sul”, a música desta viagem, por
um acaso. Deste texto.
“Ao sul / à procura do meu norte / Subo
as águas desse rio / onde a barca dos sentidos / Nunca partiu”.
De barranco em barranco, já passava o de
Odelouca. O meu destino quase.
Demorou de menos esta descida. Cheguei
cedo. Foi o carro que embalou, a estrada deserta, o céu azul, a terra é
vermelha.
Saí do carro. Tudo era verde de tantas alfarrobeiras
e figueiras à volta. O cheiro. O cheiro. Ah, quanto tempo. Mas isto é tão
isolado, já não me lembrava deste barrocal em pleno, amiga. Desculpa mas não
notas o cheiro, os cheiros?
A minha amiga ria-se. Estás espantada.
Rimos. Estou espantada. Porque não vim antes? Não consegui encontrar resposta.
Isto foi antes de saber que o Sul tem o
tempo.
Fora das horas do Norte, passei dois
dias, com tempo. Noutro tempo, sem horas. Com outras pessoas, outras cores.
Conversas com tempo à mesa, sem mesa, ao sol, com vento, no sul.
Dali não se vê o mar. Foi a primeira vez
que fui ao Algarve e não vi o mar, pensei.
Foi preciso voltar. Custou. O Norte tem as
horas. O Sul tem o tempo. E as bungavílias…
Decidi prolongar o Sul. Saí da
auto-estrada em Almodôvar.
Meti pelo meio do Além Tejo, Alentejo,
os pensamentos cheios, um turbilhão calmo de novas hipóteses, da possibilidade
de outra vida.
A música e a voz do Zambujo. Ao Sul.
Castro Verde, planícies douradas, Aljustrel,
minas fechadas, Ervidel, campos de girassóis, Ferreira do Alentejo, árvores que
voltam e mais umas curvas, só paro no Torrão. O Torrão de barras azul forte. O
Sul a ficar sem tempo. Alcáçer ainda é sul, apesar do sal.
Reentrei na auto-estrada. Voltei ao
Norte com o Sul na alma.
* de João Monge e João Gil
Que texto bonito. Parabéns
ResponderEliminarAdorei o texto, Cristina! Parabéns! Bj gde
ResponderEliminarContigo "cheguei" ao sul...que saudades eu tenho!
ResponderEliminarEste teu texto traz-me ao pensamento esta interrogação:como é que eu fui capaz de deixar
ResponderEliminaro meu Sul.
Bem hajas filha por este texto que escreveste que me trouxe recordações tão intensas que até senti o cheiro da terra(pura ilusão,eu sei)
Este teu texto trouxe-me ao pensamento esta interrogação:como é que eu tive coragem de
ResponderEliminardeixar o meu sul?...
Ao ler o que escreveste embrenhei-me de tal modo na leitura que até parecia que sentia os cheiros do barrocal algarvio.